O debate em torno da norma linguística no Brasil está inevitavelmente vinculado ao tipo de sociedade que é a nossa, de modo que, na prática, fica impossível tratar de temas relacionados à língua sem tratar, junto com eles, de fatores socioeconômicos e, por tabela, políticos. Isso vale, claro, para todas as sociedades humanas, porque as línguas são, por sua própria natureza sociocultural, campos de batalhas permanentes, mas em cada uma delas os conflitos linguísticos assumem características próprias, específicas à formação histórica e à estrutura social de cada lugar. Num país marcado por alguns dos índices de desigualdade e injustiça mais perversos do planeta, o que vou chamar aqui de debate normativo (melhor talvez fosse embate, já que falei de campos de batalha) tem que se articular com o exame atento da nossa estrutura social.
Depois da assim chamada independência, em 1822, a reduzida elite intelectual — masculina, branca e escravagista — se divertiu com a chamada “questão da língua brasileira”, um jogo de salão que, por isso mesmo, nunca alterou de fato as relações sociolinguísticas do país: o padrão vigente em Portugal, de inspiração literária “clássica”, preservou seu estatuto de única forma de língua “certa” (ou “legítima”, conforme a definição de Pierre Bourdieu), de único objeto de ensino, até porque o ensino era privilégio daquela mesma reduzida elite. A ideia de que a imensa maioria da população brasileira falava “errado” não sofreu abalo — sobretudo porque essa imensa maioria era afrodescendente, o que já a relega(va) ao subsolo da pirâmide das classes sociais, e seus modos de falar eram considerados, logo (e literalmente) de cara, toscos e indignos do rótulo de “língua”.
Um século depois, com os modernistas, ressurgiu o desejo de valorizar o português brasileiro, principalmente em suas características “populares”. Não por acaso, o principal porta-voz desse desejo foi Mário de Andrade (1893-1945), mestiço e homossexual, minoria absoluta num meio intelectual, mais uma vez, essencialmente branco, heteronormativo e de classe média para alta. Mas foi um movimento de literatos, não de pessoas dedicadas especificamente ao estudo das línguas (aqui, de novo, se destaca Mário que, além de poeta, romancista e contista, também se dedicou a pesquisas etnográficas sobre as manifestações culturais brasileiras de todas as regiões, com destaque para as de matriz indígena e africana).
Dando um salto no tempo, chegamos ao final da década de 1960, muito importante para os estudos ditos “científicos” das línguas, uma vez que a disciplina Linguística foi introduzida nas principais universidades do país em 1961. Com isso, o debate normativo adquiriu um caráter novo, pois deixou de ser reservado aos filólogos de formação tradicional, aos gramáticos prescritivistas, e se abriu para discussões embasadas nas teorias linguísticas que vigoravam na época (estruturalismo clássico, bem consolidado, e estruturalismo gerativista e sociolinguística, em seus primórdios). Em 1969 tem início o Projeto NURC (Norma Urbana Culta) que visava descrever as variedades urbanas do português brasileiro, tendo como informantes as pessoas consideradas “cultas”, isto é, nascidas e criadas em grandes ambientes urbanos e com curso superior completo. O enorme volume de dados acumulados pelo NURC permitiu, décadas depois, a produção da Gramática do português culto falado no Brasil, um empreendimento monumental, levado a cabo por dezenas de linguistas de diferentes centros de pesquisa e de diversas filiações teóricas.
A verificação empírica das profundas diferenças existentes entre o padrão normativo convencional e a língua realmente empregada pelas pessoas cultas levou várias e vários linguistas a questionar a validade daquele padrão como objeto e objetivo do ensino de língua na escola. Se existe uma autêntica norma culta brasileira, por que não fazer dela a base de uma nova educação linguística no país, decerto mais democrática, uma vez que essa norma era bem menos “estrangeira” à cidadã e ao cidadão comuns do que o anacrônico padrão, tão apegado à língua literária e à fala portuguesa?