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Existe lógica na língua?

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Dia desses, publiquei uma postagem em que me queixava das pessoas que fazem legendas para filmes e seriados por tentarem evitar a tal “mistura de pronomes” — uma falácia total —– e escreverem coisas como “eu só queria ajudá-lo!” quando é um irmão falando para outro num momento de raiva. Escrevi que o mais natural e autêntico seria “eu só queria te ajudar!”. Eis senão quando uma pessoa argumentou nos comentários: “Pois parece a concordância mais lógica: tu-te, você-o...” Vamos deixar passar a “concordância” (porque não tem nada de “concordância” nesse caso, é correlação pronominal) para nos concentrarmos em lógica. Faz muitos séculos que se enraizou na cultura ocidental a ideia de que existe uma “lógica” na língua e que, por isso, é preciso submeter a língua a essa suposta lógica. A consequência dessa ideia é que, segundo ela, qualquer desvio com relação a essa lógica constitui um erro no uso da língua, língua que deveria ser como um relógio que nunca se atrasa (e na própria etimologia da palavra relógio — o grego horo·logion — está bem escondida a lógica, a “lógica das horas”).

A palavra lógica deriva do grego lógos e é aí que tudo começa a se complicar. Por quê? Porque ao longo da história antiga, esse lógos foi definido e redefinido dezenas de vezes e adquiriu uma quantidade de sentidos de deixar a gente tonta (até sinônimo de “Deus” ele virou). O primeiro filósofo grego a utilizar o termo foi, ao que se sabe, Heráclito de Éfeso (c. 535-c. 475 aec), um autor de quem só temos fragmentos escritos, nenhuma obra completa. Pelo que se pode deduzir desses fragmentos, lógos para Heráclito era o “conjunto harmônico de leis que comandam o universo, formando uma inteligência cósmica onipresente que se plenifica no pensamento humano”, segundo aparece no dicionário Houaiss. Não é pouca coisa, né? O nosso pensamento seria a síntese, a consubstanciação dessa inteligência cósmica que é o lógos. De fato, para os filósofos gregos antigos, existia uma inter-relação entre a inteligência humana, a natureza e o universo. A inteligência humana (psykhe) se organizaria segundo as mesmas leis que governam a natureza (physis), a qual, por sua vez, se organizaria segundo as mesmas leis que regem o universo (kósmos). Desse modo, o pensamento só é adequado, correto e justo se for... lógico, isto é, se estiver de acordo com as leis da natureza e, um nível acima, com as leis do universo.

Como os filósofos gregos acreditavam que a língua é a exteriorização do pensamento, as expressões linguísticas também passaram a ser chamadas de lógos. Num dos diálogos de Platão, intitulado O Sofista, temos a seguinte passagem:

Estrangeiro: — Ora bem, pensamento e discurso [lógos] são a mesma coisa, só que o primeiro, que é uma conversa silenciosa e íntima da alma consigo mesma, recebeu o nome especial de pensamento. Não é verdade?

Teeteto: — É verdade.

Estrangeiro: — E a corrente que sai dela pela boca, por meio de sons, recebe o nome de discurso [lógos].

O lógos então designa a inteligência cósmica, a inteligência humana e a expressão dessa inteligência por meio da fala, que é lógos, mas principalmente dia·lógos (diálogo, “através do discurso”). Essa tese — a de que pensamento e língua são a mesma coisa e que a segunda é só a expressão do primeiro — se enraizou na cultura ocidental, até porque parece muito intuitiva, ou seja, é fácil concluir que, se eu digo alguma coisa, é porque a pensei antes. As pessoas que a partir do século 20 têm se dedicado às investigações da cognição humana não concordam com essa tese clássica e vêm propondo outras explicações para a relação pensamento-linguagem (como o russo Lev Vygotsky [1896-19434]). Mas o que quero destacar aqui é o uso de lógos para definir o “discurso” (ou a fala, simplesmente).

Se língua e pensamento são a mesma coisa, é preciso criar instrumentos que descrevam essa relação. Daí surgiram duas disciplinas: a lógica e a gramática. A lógica seria a “gramática” do pensamento, enquanto a gramática seria a “lógica” da língua. Vejam que a lógica é o estudo do pensamento, embora o termo lógos seja definido como “discurso” no diálogo de Platão.

Um aspecto importantíssimo disso tudo é que a gramática não descrevia todo e qualquer funcionamento da língua: descrevia e prescrevia os usos considerados corretos, os usos verdadeiros. A lógica também não investigava todas as formas possíveis de raciocínio, mas, aqui também, somente aquelas consideradas corretas e bem estruturadas e, principalmente, capazes de levar à constatação da verdade. Esse caráter estritamente normativo-prescritivo da gramática e da lógica vai começar a ser questionado e abandonado, no meio científico, a partir do século 19, com o desenvolvimento da linguística teórica e da psicologia experimental. A linguística se interessa por toda e qualquer manifestação linguística, e não só pelas tradicionalmente consideradas corretas, assim como a psicologia se interessa por todos os aspectos do funcionamento da mente, e não só pelos considerados... lógicos. Mais adiante, Freud, com o conceito de inconsciente, vai mostrar que o funcionamento da mente sempre esteve muito longe de seguir regras lógicas, seja lá o que forem. A famosa máxima de Aristóteles, “o homem é um animal racional”, se esfarela no divã.

Veja-se que o caráter prescritivo da gramática e da lógica só foi contestado mais de 2.000 anos depois das formulações dos filósofos antigos. Por isso ainda têm raízes tão fundas na nossa cultura.

Hoje sabemos que a língua e o pensamento não são a mesma coisa, mas a lógica e a gramática elaboradas pelos filósofos antigos são, sim, a mesma coisa, mas de uma outra perspectiva. Qual? Muito simples: a lógica clássica, a lógica aristotélica, é uma cópia pouco disfarçada da gramática da língua grega! Quem melhor demonstrou isso foi o importante linguista francês Émile Benveniste (1902-1976).

As famosas categorias de Aristóteles, que definiriam os gêneros ou divisões primeiras do ser, correspondem, uma a uma, a categorias gramaticais do grego: a substância está vinculada aos substantivos; a qualidade, aos adjetivos; o tempo e o lugar, aos advérbios; as categorias estar-na-postura-de, estar-no-estado-de, fazer e sofrer correspondem, respectivamente, a características próprias dos verbos em grego antigo (a voz média, o aspecto perfeito, a voz ativa e a voz passiva)... Aristóteles só pôde definir essas categorias lógicas do modo como as definiu porque era falante de uma língua que apresentava, em sua estrutura gramatical, categorias equivalentes. Afinal, essas categorias se vinculam todas à noção de ser, uma noção que tem um verbo próprio em grego, verbo, porém, que em muitas línguas do mundo simplesmente não existe. Em sua análise da questão, Benveniste mostra que a língua ewe, por exemplo, falada na África ocidental, dispõe de quatro verbos diferentes para exprimir o que as línguas indo-europeias exprimem com um único verbo “ser”. Se um falante dessa língua se dispusesse a elaborar uma “metafísica” e uma “lógica”, esta certamente seria muito diferente da lógica aristotélica, calcada no sistema gramatical do grego.

E nem precisaríamos ir até a África, como foi Benveniste: tudo o que, em grego, é predicado pelo único verbo “ser” (eimi) precisa ser distribuído, em português, entre os verbos ser e estar, uma dupla que não existe em várias outras línguas indo-europeias (inglês, francês, alemão, russo, latim, grego etc.), o que já tornaria uma lógica em português distinta da lógica clássica! Para um falante de português, ser frio e estar frio expressam estados de coisas muito diferentes. Se Benveniste teve de recorrer ao ewe é porque sua língua, o francês, não lhe permitia fazer essas distinções, uma vez que só dispõe do verbo être.

Por que estou contando toda essa história? Porque é preciso abandonar a ideia de que existe uma “lógica” na língua e que é preciso respeitá-la à risca. Até porque nessa ideia está embutida a concepção da língua como uma coisa-em-si, fora das pessoas que a falam. O funcionamento da língua decorre de processamentos cognitivos e de fatores socioculturais, já que somos seres gregários, vivemos em sociedade. A língua é, portanto, um dispositivo sociocognitivo. E esses processamentos cognitivos nada têm a ver com as formulações da lógica clássica. Sendo de caráter sociocognitivo, o fator mais importante, mais importantíssimo das línguas humanas é o uso, palavrinha curta mas que é responsável por tudo o que acontece numa língua. É o uso coletivo da língua que provoca a mudança linguística, por exemplo, por meio de fatores articulatórios (decorrentes do uso que fazemos da língua, dos dentes, da glote, do nariz, dos pulmões etc. na produção fonética) e fatores cognitivos como a gramaticalização, a abdução, a reanálise, a metáfora e a metonímia, a analogia, a construcionalização e por aí vai, e vai longe. Estudar uma língua no passado e no presente é recorrer a instrumentos de análise (a teorias e a experimentações) que nadica de nada têm a ver com lógica, no sentido tradicional do termo. Se hoje nós usamos o pronome te com referência a você (“você sabe que eu te admiro muito”), é porque as e os falantes de português brasileiro, em suas complexas e infinitas interações sociais por meio da língua e por meio de operações cognitivas, reanalisaram o sistema gramatical e passaram a usar os pronomes desse jeito. E nada no universo pode nem vai eliminar essa mudança. Aceita que dói menos!

Se a língua fosse “lógica”, não teríamos as formas verbais [ela] constrói e destrói, porque os outros verbos formados com a raiz -struir (instruir, obstruir) se conjugam [ela] instrui e obstrui. Em inglês, faz-se uma diferença nítida entre he (só para humanos masculinos), she (só para humanas femininas) e it (para tudo mais). No entanto, no plural, tudo vira they – qual a lógica disso? Qual a lógica de garfo ser masculino e colher, feminino? Por que o pretérito perfeito dos verbos ser e ir é idêntico (eu fui, tu foste, ele foi...), se em latim, de onde eles vêm, as conjugações eram diferentes? Por que os substantivos abstratos terminados em -or (horror, pavor, fedor, ardor, calor...) são masculinos, mas dor e cor são femininos? Por que suor tem ó aberto, se as outras palavras dessa lista tem ô fechado? Por que senhora tem ó aberto, se todos os femininos de palavras como professor, diretor, criador, operador tem ô fechado? Por que hoje dizemos começar a fazer alguma coisa e antigamente se dizia começar de fazer alguma coisa? Por que tigre era feminino antigamente e hoje é masculino? Por que usamos uma mesma forma verbal como falamos, vendemos, dormimos para exprimir o passado e o presente (tem coisa mais ilógica)? Qual a lógica de termos três plurais para aldeão (aldeões, aldeãos, aldeães)? Aliás, qual a lógica de termos plurais diferentes para as palavras terminadas em -ão?

Em suma: recorrer a uma suposta lógica da língua para condenar usos perfeitamente normais é incorrer num erro milenar, que deve ser abandonado hoje em dia, ao menos por quem se dedica ao estudo e ao ensino de língua.

 

Não é mudança linguística. É tragédia social!
Se você dá aulas de português...

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