Francisco Calvo del Olmo
Muito provavelmente, 2020 não passará para a história como um ano feliz. A crise sanitária originada pela SARS-CoV-2, causadora da COVID-19 (do inglês Coronavirus Disease 2019), pôs em xeque o atual modelo do capitalismo global. Para funcionar, a economia precisa da circulação das pessoas — em primeiro lugar, das e dos trabalhadores, produtores de bens e de serviços, mas também dos consumidores aos quais esses bens se destinam. Se esse mecanismo para, detém-se a produção de mais-valia, benefícios financeiros que, em última instância, vão parar nas mãos daquele 1% da população mundial composto pelos multimilionários. Segundo dados da Oxfam Intermon (disponível em: https://www.oxfam.org/es/notas-prensa/el-1-mas-rico-de-la-poblacion-mundial-acaparo-el-82-de-la-riqueza-generada-el-ano, acesso em: 24 mai. 2020), esse 1% acumulou 82% da riqueza global produzida no ano passado, enquanto a metade da humanidade mais pobre não obteve nenhum benefício desse processo de depredação. No topo desse 1%, encontramos as dez maiores fortunas do planeta, todos homens brancos estadunidenses ou europeus, que precisariam viver mais de mil anos para gastar uma mínima fração de suas fortunas. Porém, a situação da pandemia nos obriga a deter a cadeia de transmissão do vírus ficando em casa para evitar contagiar outras pessoas ou sermos nós mesmas contagiadas. Essa situação nos obriga a evitar deslocamentos para ir aos nossos lugares habituais de trabalho e, ao mesmo tempo, precisamos redobrar os cuidados: cozinhar, limpar, assistir as pessoas doentes e idosas. Tarefas muitas vezes em mãos femininas, mal remuneradas, sottopagate, desvalorizadas, quando não feitas gratuitamente no âmbito familiar.
O que está em jogo aqui é uma divisão binária entre economia e cuidados, entre a proteção da vida ou a promoção do mercado. Governos nacionais, independente da sua cor política, e instâncias supranacionais, independente de suas orientações ideológicas, têm se confrontado com esse aparente dilema. Como amostra disso — talvez anedótica, mas bastante significativa —, podemos lembrar a atuação da administração estadunidense, que monopolizou máscaras e outros materiais médicos no mercado internacional, enquanto o governo cubano mandava médicos voluntários às regiões do norte da Itália, dramaticamente afetadas pela pandemia. Política individualista e própria de um nacionalismo bélico, por um lado, política solidária entre povos latinos, por outro. Em síntese, a crise da COVID-19 nos leva a nos interrogar de novo sobre o valor da vida, pergunta fundamental e recorrente para a condição humana desde os tempos de Platão.
Isidoro de Sevilha, que viveu entre os anos 556 e 636 da era comum, escreveu uma espécie de enciclopédia intitulada Etymologiae (Etimologias, em português). Esse nome provinha de um procedimento de ensino que partia da origem de uma palavra para explicar o seu significado, muitas vezes de forma algo forçada ou pitoresca. Com este post, pretendo começar uma série para refletir sobre a origem das palavras para explicar assuntos da atualidade. Assim, gostaria de pedir o favor das leitoras e dos leitores quando minhas exposições resultarem algo forçadas. O objetivo é mergulhar nas palavras, na história da nossa língua, para conhecê-las melhor e, conhecendo-as melhor, usá-las de forma mais certeira, como se as disséssemos pela primeira vez.
O substantivo vida, está bem representado não só em português, mas também em todas as outras línguas da família românica ou neolatina: em galego, espanhol, catalão e occitano escreve-se exatamente igual: vida; em sardo essa grafia alterna com bida, em francês temos vie, em italiano vita e em romeno viață. Observamos, portanto, que as vozes atuais mantêm vivo o étimo latino VITA, substantivo da primeira declinação, que tinha o mesmo significado. Diferentemente dos fósseis naturais que — ao menos até o momento — não podem ser clonados, os fósseis linguísticos, conservados nas páginas das bibliotecas, podem ser reanimados para criar novas palavras. Dessa forma, o mesmo étimo produziu por via erudita o adjetivo vital. E a coisa não fica por aqui, pois muitos outros termos derivados dessa mesma raiz entraram na língua portuguesa por diferentes vias: viável, vitamina, vivaz, viveiro, vivíparo, vivenda, vianda, vivência, convivência. Todas essas palavras têm seus cognatos nas outras línguas da família. E por falar em famílias, a visão das línguas modernas como a “evolução” resultante de línguas precedentes, a classificação das línguas em árvores genealógicas com “mães”, “tias” e “irmãs”, as metáforas sobre o nascimento e a morte de uma língua procedem do século XIX, quando a teoria da evolução de Darwin revolucionava a área das ciências biológicas, e os linguistas tratavam de trazer aqueles mesmos princípios para a aplicação do método histórico-comparativo. De fato, foi o método histórico-comparativo que permitiu reconstruir a macrofamília das línguas indo-europeias mediante a comparação de línguas antigas bem documentadas como o grego, o latim, o sânscrito, o gótico, o antigo eslavo, o irlandês, o armênio etc. As leitoras e leitores devem ter notado que o latim é parte integrante da lista: a pergunta que surge, então, é se não seria possível mergulhar em águas mais profundas buscando a etimologia de VITA.