Blog da Parábola Editorial

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Como traduzir palavras intraduzíveis?

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[…]

 

Uma conversa entre irmãos

 

Há uns tempos, o meu irmão Diogo enviou-me a ligação para um artigo sobre línguas.

 

— Vais adorar!

 

Como sou um geek das línguas e trabalho em tradução, seria mais do que normal que eu adorasse o artigo. Mas mal olhei para o título, disparei:

 

— Por favor! Dá para ver que é um artigo parvo só pelo título…

 

Diga-se, em minha defesa, que estava um pouco irritadiço nesse dia.

 

O meu irmão lá me convenceu a deixar de ser casmurro e a ler o artigo com a mente aberta, que é aquilo que eu digo que devemos fazer sempre.

 

 

Ler […] com a mente aberta, que é aquilo que eu digo que devemos fazer sempre.

 

 

O artigo tinha como título “11 Untranslatable Words From Other Cultures” — ou seja, “Onze palavras intraduzíveis de outras culturas”.

 

Tinha a certeza, mesmo antes de começar a ler, que o artigo incluiria as traduções das palavras supostamente intraduzíveis.

 

Comecei a ler e, claro, lá estavam as tais palavras intraduzíveis — com as traduções escarrapachadas ao lado! Suspirei.

 

Este é o drama de quem trabalha em tradução: de segunda a quarta, toda a gente acha que aquilo que fazemos é fácil; de quinta a domingo, toda a gente acha que aquilo que fazemos é impossível.

 

A verdade é esta: a tradução nunca é impossível, mas é quase sempre difícil. Adiante.

 

 

A tradução nunca é impossível, mas é quase sempre difícil.

 

 

Se quiser ver quão disparatado é o título, proponho que aceda ao artigo (a ligação está no final deste texto) e repare como cada palavra intraduzível tem a tradução mesmo ali ao lado.

 

Alguns exemplos:

 

Waldeinsamkeit

Sensação de estarmos sozinhos na floresta

Culaccino

Marca deixada por um copo frio no tampo duma mesa

Pochemuchka

Pessoa que faz muitas perguntas” (“metediço”)

 

E por aí fora… Podem ser traduções um pouco palavrosas, mas são traduções.

 

Depois de ler o artigo, foi este o diálogo com o meu irmão:

 

— Estás a ver, a autora traduz as palavras. Não são intraduzíveis!

 

— Sim, mas talvez ela quisesse dizer “palavras que não são traduzíveis usando uma só palavra”.

 

— Então porque não chamou ao artigo “Palavras que não são traduzíveis usando uma só palavra”?

 

— Porque ninguém ia ler um artigo com um título desses!

 

Fiquei sem argumentos.

 

Seja como for, a autora acertou em cheio: não só as estatísticas do artigo mostram que foi muito lido, como acabou transformado em livro.

 

E, diga-se, os desenhos são interessantes e aquelas palavrinhas são, de facto, estranhas e parecem intraduzíveis — mesmo quando temos ali ao lado as traduções. Não deixa de ser um bom artigo.

 

(O artigo está em: http://blog.maptia.com/posts/untranslatable-words-from-other-culturesAcabou transformado em livro, com o título Lost in Translation: An Illustrated Compendium of Untranslatable Words from Around the World. A autora é Ella Frances Sanders. Claro que o conceito de “intraduzibilidade” do artigo quer dizer apenas “impossibilidade de traduzir usando apenas uma só palavra”. Toda a questão está muito bem explicada no curto artigo “Translating the untranslatable”, em que Geoffrey K. Pullum desmonta um outro artigo que também cai neste erro. Está em: http://languagelog.ldc.upenn.edu/nll/?p=2741. Pullum foi, aliás, o linguista que escreveu um livro inteiro a gozar com quem acredita que os esquimós têm centenas de palavras para “neve” — o livro chama-se The Great Eskimo Vocabulary Hoax.)

 

 

Como traduzir palavras intraduzíveis

 

A quem ainda achar que essas palavras intraduzíveis existem mesmo, proponho uma experiência: diga-me uma palavra estrangeira qualquer que não possa ser traduzida. Explique o seu significado em português. Aí tem uma possível tradução. Não sabe explicar o significado? Então como sabe que é intraduzível? Só sabe explicar na língua original? Então traduza a explicação.

 

Outra forma de traduzir estas palavras intraduzíveis: use a palavra numa frase real, daquelas que são usadas no dia-a-dia, e traduza essa frase. Verá que não é impossível.

 

Sim, no fundo estamos a traduzir a definição da palavra, mas a verdade é que uma boa tradução não é uma substituição palavra por palavra. O tradutor traduz textos, não uma série de palavras separadas. Se uma palavra tem alguma função num texto (o que acontece quase sempre), os tradutores podem usar uma só palavra para a traduzir ou então um conjunto de palavras. Pode até acontecer que o tradutor opte por eliminá-la, pois a omissão, na língua de chegada, poderá significar (ou fazer) a mesma coisa que a palavra original. E, mais: acontece por vezes que uma expressão inteira na língua de partida acabe traduzida por uma só palavra na língua de chegada.

 

Uma boa tradução não é uma substituição palavra por palavra. O tradutor traduz textos, não uma série de palavras separadas.

 

 

Dizer que existem algumas palavras que não podemos traduzir usando uma só palavra não significa quase nada. As línguas são, de facto, diferentes — mas não são barreiras inultrapassáveis.

 

 

O que não se pode dizer não se pode traduzir

 

Depois deste solilóquio todo, tenho de dizer agora algo que parece uma contradição: há muita coisa que não podemos traduzir.

 

Quando oiço determinada palavra na minha língua, aparecem na minha cabeça uma série de imagens e sinto no corpo todo emoções que não consigo, de facto, traduzir noutras palavras. É por isso que algumas pessoas dizem que determinada palavra é intraduzível. Mas, se virmos bem, não só não conseguimos traduzir esse estado emocional para outra língua, como nem sequer o conseguimos descrever na nossa própria língua. Seja o que for que não conseguimos traduzir, também não conseguimos dizer. Por outro lado, tudo o que conseguirmos dizer, também conseguimos traduzir.

 

 

Seja o que for que não conseguimos traduzir, também não conseguimos dizer. Por outro lado, tudo o que conseguirmos dizer, também conseguimos traduzir.

 

 

Mas, se eu não consigo, pode haver alguém mais talentoso que consiga. O talento dos escritores está em dizer aquilo que, aos olhos dos outros, parece impossível pôr em palavras. O talento dos tradutores está em conseguir traduzir aquilo que, aos olhos dos outros, parece impossível traduzir.

 

Por isso, podemos dizer que nada do que sentimos pode ser realmente traduzido. Porquê? Porque as minhas experiências são muito diferentes das experiências do meu vizinho. Agora, se o meu vizinho for suficientemente talentoso para escrever o que está a sentir, haverá decerto tradutores capazes de traduzir para qualquer língua humana aquilo que ele escreveu de forma tão talentosa.

 

Ou seja: o que não se consegue traduzir também não se consegue dizer. Mas até o que dois gémeos dizem um ao outro no seu gemeolecto particular pode ser traduzido para qualquer língua.

 

 

O que não se consegue traduzir também não se consegue dizer.

 

 

Em suma: tudo o que alguém consegue dizer numa língua pode ser dito em qualquer outra língua.

 

[Já dentro de cada língua temos muitas outras barreiras, bem mais complicadas do que a barreira das línguas — mas isso é outro problema, que discuti no capítulo sobre o tribalismo em meu livro Doze Segredos da Língua Portuguesa.]

 

 

Sugestões de leitura

 

Para quem quiser escavar um pouco mais fundo em todas estas questões, proponho outros três livros: o primeiro é talvez o livro mais interessante que já alguém escreveu sobre tradução: Is That a Fish in Your Ear: Translation and the Meaning of Everything, de David Bellos (foi publicado em 2011 e, que eu saiba, não tem tradução em português).

 

O segundo livro será um livro um pouco contrário à tese que defendi. Estou a falar de Through the Language Glass, de Guy Deutscher. Contrário porquê? Porque, se virmos bem, a ideia de que todas as palavras são traduzíveis opõe-se ao determinismo linguístico, a ideia de que a língua que falamos limita de forma muito concreta o nosso pensamento. A versão radical dessa teoria leva a muitos absurdos: a tradução será impossível, os falantes de cada língua não podem comunicar verdadeiramente com os falantes de outras línguas e mais uns quantos disparates. Claro que há uma versão mais moderada, que é exposta por Deutscher neste livro muito interessante.

 

Já John McWhorter, que havemos de encontrar mais à frente no livro, não aceita nem sequer a versão moderada: para ele, dizer que as estruturas da língua limitam o pensamento de cada pessoa é um disparate de uma ponta à outra. O que ele diz parece contra-intuitivo, mas faz muito sentido — e é um bom antídoto contra todos os essencialismos, nacionalismos e, porque não, purismos que por aí abundam. Proponho-vos, assim, a leitura de The Language Hoax.

 

Texto originalmente publicado em Doze Segredos da Língua Portuguesa (Lisboa: Guerra e Paz, 2016).

 

 

 

A TRADUÇÃO CAPENGA E O IMPERIALISMO LINGUÍSTICO
Língua: fator de identidade e forma de ação

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