Blog da Parábola Editorial

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A estrutura da língua portuguesa

A estrutura da língua portuguesa

 

Um sistema semiótico infinito


Analisar cientificamente uma língua não é nada fácil. Os linguistas, que são os estudiosos que se dedicam profissionalmente a esta tarefa, sabem disso muito bem porque se deparam continuamente com as inesgotáveis complexidades estruturais e funcionais da língua.

 

Para se ter uma ideia dessa complexidade, basta lembrar que qualquer língua é uma realidade infinita. Entendamos bem isso. O número de sons da fala de que se serve uma língua é finito (em torno de três dezenas). O número de suas palavras (ainda que imenso) é finito (calcula-se que uma língua como o português brasileiro tem algo em torno de meio milhão de palavras). O número de regras com as quais organizamos os enunciados é também finito (embora não tenhamos ainda ideia clara de sua quantidade).

 

qualquer língua é uma realidade infinita

 

Apesar disso tudo, o número de enunciados possíveis numa língua qualquer é infinito. Há um dizer clássico entre os linguistas que resume bem essa propriedade das línguas humanas: a língua faz uso infinito de meios finitos. Até onde vai nosso conhecimento, nenhuma outra espécie animal dispõe de um sistema semiótico infinito como nós, humanos.

 

Diante desse quadro, poderíamos supor que, sendo finitos os meios estruturais, bastaria que eles fossem descritos para alcançarmos uma apresentação científica completa de uma língua. No entanto, as coisas não são tão simples assim. Primeiro, porque a língua não se esgota em sua estrutura. Para analisá-la adequadamente, temos de considerar também seu funcionamento social.

 

A língua faz uso infinito de meios finitos.


Segundo, porque nenhuma língua é uma estrutura homogênea e uniforme. Qualquer língua se multiplica a tal ponto em inúmeras variedades que muitos chegam a dizer que atrás de um nome – português, por exemplo – se escondem, de fato, muitas “línguas”.

 

Trata-se aqui, por exemplo, de variedades geográficas (os chamados dialetos), sociais (os dialetos sociais urbanos e rurais, os jargões profissionais, as gírias, os registros e gêneros próprios de cada atividade humana) e estilísticas (variedades próprias da fala, variedades próprias da escrita, estilos formais ou informais, familiares ou vulgares).

 

Acrescentemos a toda essa gama de variedades as peculiaridades de fala e escrita de cada um dos falantes (afinal, não há dois falantes que falem ou escrevam exatamente do mesmo modo) e começaremos a ter uma ideia da imensidão da língua.

 

E essa complexidade toda se amplifica enormemente se considerarmos ainda alguns fenômenos corriqueiros do funcionamento social da língua.

 

Lembremos, por exemplo, que, em situação de uso, um enunciado pode sempre significar seu contrário. Assim, digo "João é muito honesto", mas, pelo mecanismo da ironia, faço este enunciado significar exatamente seu oposto, isto é, que João é desonesto.

 

Por outro lado, um enunciado pode ter um significado bem diferente daquele que está contido em sua estrutura. Assim, alguém diz: "Está frio aqui", e seu interlocutor identifica nesta expressão um pedido ou uma ordem para que as janelas sejam fechadas (sem que as janelas sequer tenham sido mencionadas!). 

 

Uma língua é um universo infinito e em contínuo movimento.


São dois exemplos banais, que ilustram bem o caráter fluido e movente da língua em uso. Talvez, como falantes, nem percebamos a frequência com que jogamos com as estruturas da língua, fazendo-as significar para além delas mesmas.


A esses dois exemplos poderíamos ainda acrescentar o imenso continente que é o uso figurado da linguagem. Embora algumas pessoas pensem que a linguagem figurada só ocorre na poesia, nosso dizer cotidiano está repleto de comparações e gestos metafóricos e metonímicos.


Diante de todo esse quadro praticamente inesgotável de recursos, podemos afirmar que uma língua é um universo infinito e em contínuo movimento. Mesmo que conseguíssemos juntar num megadicionário todas as palavras da língua (com os diferentes sentidos de cada uma delas) e conseguíssemos apresentar numa megagramática todos os princípios que regem a construção dos enunciados estruturalmente possíveis na língua (cobrindo toda a gama de suas variedades), ainda assim a língua como tal nos escaparia.


E isso porque ela não é uma realidade estática, que possa ser congelada num dicionário e numa gramática. Ela não é um tesouro, uma mera coleção de sons, palavras e enunciados. Ela é, de fato, uma realidade dinâmica, plástica, aberta, em contínuo movimento. E ela tem de ser assim, porque, de outro modo, ela não seria capaz de dar forma à miríade de eventos de expressão e interação que ocorrem continuamente no interior da sociedade que a fala (ou, como no caso da língua portuguesa, das sociedades que a falam).



A língua é dinâmica, plástica, aberta e em contínuo movimento porque a experiência humana tem essas características. O ilimitado e a dinamicidade da língua têm a ver com o ilimitado e a dinamicidade da vida humana.



Assim, no mesmo momento em que estivéssemos terminando nosso megadicionário, novos sentidos estariam sendo agregados às velhas palavras e novas palavras estariam sendo criadas ou incorporadas de outras línguas. Mesmo que conhecêssemos integralmente os princípios das alterações semânticas das palavras ou da criação e incorporação de novas palavras, sua manifestação ou direção são, de fato, imprevisíveis.


Ainda que conhecêssemos todos os princípios de construção dos enunciados da língua em todas as suas variedades, não teríamos como prever as direções do uso figurado ou do jogo com as estruturas que as faz significar para além delas mesmas.


Além disso, não podemos perder de vista outro fato importante para apreendermos a complexidade da língua: ela passa continuamente por processos de mudança que vão lhe alterando a configuração estrutural. Sabemos ainda pouco de como se dão esses processos. Sabemos, no entanto, que eles atuam permanentemente e parecem emergir justamente do encontro das variedades.


As diferentes maneiras de pronunciar ou de estruturar os enunciados criam um caldo propício à mudança. Os linguistas costumam dizer que a mudança emerge da heterogeneidade, isto é, fenômenos típicos de algumas variedades acabam por ser adotados progressivamente por falantes de outras variedades, resultando em alterações na pronúncia ou na estrutura dos enunciados destas últimas. E esse é um processo contínuo, impossível de ser estancado.


Apesar de tudo o que apontamos aqui, há quem não perceba a enormidade e a dinâmica da língua e acredite que ela pode ser reduzida a meia dúzia de regrinhas.


Mesmo que nos restringíssemos à chamada “língua padrão”, que alguns, infelizmente, tratam como uma camisa de força a ser amarrada nos falantes para limitar ou impedir suas ações de fala ou escrita, veríamos que também ela não escapa da variedade, nem da mudança, nem do movimento contínuo.


É uma quimera achar que podemos abarcar a língua em sua totalidade. Quimera maior, porém, é querer domar a língua, estancar sua dinâmica, fixá-la num monumento pétreo.



Isso não significa, obviamente, que devamos desistir de estudá-la cientificamente. Quanto mais a compreendermos, mais compreenderemos a nós mesmos, seres de linguagem que somos. Temos, no entanto, de estar cientes de que a língua sempre nos escapa. E nos maravilharmos com isso.


Por outro lado, embora a chamada língua padrão seja também um “peixe ensaboado”, isso não significa que não devemos nos ocupar dela. Não pode ser desmerecida sua importância sociocultural como uma tentativa de se construir um espaço de relativa unidade por sobre a imensa variedade linguística (em especial para eventos de escrita e para os meios de comunicação de massa). Para que a língua padrão cumpra de fato esse seu papel, nós precisamos superar criticamente a cultura do erro que tem sido tradicionalmente associada a ela entre nós, substituindo essa atitude negativa, inquisitorial, condenatória por uma atitude mais condizente seja com sua relevância sociocultural, seja com sua dinâmica. 

 

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