Um dos precursores dos estudos sobre o português falado no Brasil preza a liberdade dos usuários da língua e critica o apego excessivo dos gramáticos às regras
Em que pé está o Projeto para a História do Português Brasileiro, um de seus trabalhos mais recentes?
Esse projeto começou na USP em 1987. Quando começavam a surgir os resultados dos estudos sobre a língua falada, que tínhamos começado na década de 1970, perguntei para os meus colegas de onde tinha vindo tudo aquilo. Começamos então a reconstituir a história da implantação e do desenvolvimento do português brasileiro, com o mesmo método dos projetos anteriores: formação de grupos de trabalho, cronograma, seminários nacionais, publicação dos resultados. Saíram 10 volumes de estudos e agora está saindo a consolidação dos resultados, em 12 volumes. Sete volumes devem sair ainda neste ano. O primeiro será o volume 4, coordenado por Célia Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre a história dos substantivos, adjetivos e preposições. Será que tudo veio do português europeu ou inventamos algo? Uma estudante de doutorado que estou orientando na Unicamp, Flávia Orci Fernandes, percorreu as redes sociais e pegou marcas de plural no pronome que, que não é mais invariável. Hoje já se fala ou se escreve: ques pessoas? Como explicamos esse dinamismo da língua? Temos de documentar e explicar. A mudança do idioma vai criando outras regras. A classe culta ainda não aceitou, mas é uma questão de tempo, acabam aceitando. É um novo estágio da língua que está vindo.
“Será que tudo veio do português europeu ou inventamos algo?”
Que outras mudanças estão vendo?
Nossos estudos estão indicando que o plural não será mais expresso pelo morfema s no final do substantivo, mas apenas pelo s no artigo, como em os menino, por causa de um mecanismo fonológico de abertura da sílaba. Parece que as consoantes estão se transformando mais do que as vogais. Fazer não está virando fazê? Outras consoantes no fim da palavra estão caindo, como duas vez em vez de duas vezes. O plural está marcado nas duas palavras, é redundante, pode ser mais econômico marcar só o primeiro elemento e deixar o outro sem nada. O francês ainda guarda as consoantes finais na escrita, mas não mais na fala, como em l’ enfant, les enfants, o s não aparece na língua falada. Acreditamos que teremos outra língua, diferente do português de Portugal. Os dois idiomas ainda são o mesmo, mas já mostram muitas diferenças. Uma projeção do ritmo dessa mudança, por meios estatísticos, indica que em 200 anos não vamos mais nos entender com os portugueses (ver Pesquisa FAPESP nº 230).
“Nossos estudos estão indicando que o plural não será mais expresso pelo morfema s no final do substantivo, mas apenas pelo s no artigo, como em os menino, por causa de um mecanismo fonológico de abertura da sílaba.”
O que mais o fascina no português brasileiro?
É a enorme variação de sotaques e de formas de execução da língua. É uma consequência de nossa história. Como os portugueses vieram em várias levas, em cada região foi se desenvolvendo uma modalidade da mesma língua. Minha mulher, Célia, vem estudando quem eram esses portugueses e de onde vieram. Eles começaram a chegar em 1532 em São Vicente, e foi pelo atual estado de São Paulo que começou a lusitanização do Brasil. Ainda no século XVI, os portugueses chegaram ao Rio de Janeiro, a Salvador e ao Recife. No século XVIII, Santa Catarina e Rio Grande do Sul receberam outros portugueses, das ilhas da Madeira e de Açores, não do continente, como no século anterior. Para ver como era a língua portuguesa nos séculos XVI e XVII, Célia examinou os autores dos testamentos deixados pelos portugueses. Ela viu que 20% dos autores eram cristãos-novos, judeus sefaradis, que tinham ido para Portugal depois de serem expulsos da Espanha. Naquela época, poucos sabiam escrever. Ela separou os escritos dos judeus, que viviam isolados. As mulheres não saíam de casa e tinham um português muito conservador. Já os homens tinham um lado mais conservador, que era o familiar, e outro menos, usado para fazer negócios. Comparando a escrita dos cristãos-novos com a dos portugueses, Célia separou o que era o idioma moderno da época – o dos portugueses – e o conservador, uma variação linguística. Ela também estudou detalhes da gramática para saber a base histórica do português caipira, que é a manutenção do português do século XV. Nosso r caipira é um resquício do português conservador, falado nessa época.
“Acreditamos que teremos outra língua, diferente do português de Portugal. Os dois idiomas ainda são o mesmo, mas já mostram muitas diferenças. Uma projeção do ritmo dessa mudança, por meios estatísticos, indica que em 200 anos não vamos mais nos entender com os portugueses.”
O r caipira tem 500 anos?
Ninguém sabe ao certo. Uns dizem que índios do Vale do Paraíba teriam esse r, mas a explicação só vale se se provar que essa tribo se estendeu sobre São Paulo e foi com os bandeirantes para o interior. Outros fonólogos acham que o r caipira é um traço que não se desenvolveu na fonologia portuguesa, mas poderia ter surgido naturalmente, como uma consequência do sistema fonológico, e não do contato com os índios. Sistema fonológico quer dizer sistema de sons. Sempre existem tendências para combinações de sons que explicam essas mudanças. Uma tendência do português brasileiro é a forma de tratar os sons sibilantes, é o que faz a diferença entre nós, paulistas, e os moradores do Rio de Janeiro, do Sul e do Nordeste. De onde veio o s chiado, como em “ach criançach”? Foi uma tendência palatizar o som sibilante. Agora essa mudança deu outro passo, porque a vogal em contexto palatal está se ditongando, como em “aichs pessoaisch”.
Por que as aulas de português e de gramática eram tão chatas e cheias de regras?
Porque ainda não existia a linguística, só a gramática escolar. O gramático tem uma percepção muito estrita da língua. Ele se vê como alguém que tem de defender a língua da mudança. Os linguistas também falam de regras porque consideram seu dever explicá-las, mas não ficam só nisso e as veem como uma gran-de curiosidade. Por que é assim? Sempre foi assim? É assim em todos os lugares? O gramático fica envolvido na aplicação das regras e vê as coisas novas como erradas e as velhas como certas. O problema é que eles, ao se esforçarem para que as pessoas obedeçam às normas da língua, não viram que estavam dando um cala-boca no cidadão brasileiro. Como se dissessem: “Tem de falar e escrever de acordo com as regras. Não fale errado!”. E as pessoas, com medo de não conseguir, falam e escrevem pouco. Esse é um efeito da pregação do gramático tradicional.
“O dono da língua é o falante, não o gramático.”
Não foi bom. O cidadão tem de se sentir à vontade para se expressar, participar dos debates, desenvolver o espírito democrático. O dono da língua é o falante, não o gramático. Aprendemos com o falante a língua como ele fala e procuramos saber por que está falando de um jeito ou de outro. A expressão veio do latim? Foi criada aqui? E podemos usar as estruturas, não apenas classificá-las e nomeá-las. Para que apenas saber as subclasses das orações subordinadas? Dizer que está falando errado não é uma atitude científica, de descoberta. A linguística substituiu o cala-boca ao prazer da descoberta científica. Foi só com a linguística que se ampliou o olhar e se passou a considerar que qualquer assunto é digno de estudo.
“ Dizer que está falando errado não é uma atitude científica, de descoberta. A linguística substituiu o cala-boca ao prazer da descoberta científica. Foi só com a linguística que se ampliou o olhar e se passou a considerar que qualquer assunto é digno de estudo.”
Como foi essa mudança?
A linguística começou no Brasil nos anos 1970. Houve um choque muito grande porque até então apenas os gramáticos estudavam a língua. Do lado dos linguistas, estavam Joaquim Mattoso Camara Júnior [1904-1970], no Rio de Janeiro, Theodoro Henrique Maurer Júnior [1906-1979], em São Paulo, e Rosário Farâni Mansur Guérios [1907-1987], em Curitiba. Foi Mansur que orientou Aryon Dall’Igna Rodrigues [1925-2014] a ser um indigenista ao lhe dizer: “Em português você só vai redescobrir o que já se sabe, mas nas línguas indígenas não, porque não são indo-europeias e têm soluções e categorias totalmente diferentes. Isso sim é novidade”. Ele tinha razão, a estrutura da língua indígena tem categorias que nem o diabo pensa, e Aryon começou a linguística indígena no Brasil. Um linguista norte-americano, Daniel Everett, veio para a Unicamp nos anos 1970 e depois estudou a língua da comunidade pirahã, no Amazonas. Ele entrou em conflito com o linguista norte-americano Noam Chomsky, que dizia que o que chamamos de recursão era universal. Recursão é a possibilidade de aplicar uma regra repetidas vezes na construção das frases. Em português, toda vez que quero colocar um plural, coloco um s. No entanto, Everett não encontrou recursividade na língua dos pirahã, que também não tem palavras para números e cores. Chomsky teve de admitir a exceção à regra que ele imaginava ser geral. Os linguistas brasileiros podem contribuir muito para a teoria geral das línguas. Existem hoje 160 línguas indígenas no Brasil. Era o dobro, mas os índios que as falavam morreram. Dessas, só foram descritas 60.
Este texto é a segunda parte da entrevista concedida pelo Prof. Ataliba T. de Castilho a Carlos Fioravanti, da revista “Pequisa Fapesp”, em setembro de 2017. Agradecemos à “Pesquisa Fapesp” e a Paula Iliadis a licença de reprodução, a Carlos Fioravanti, a colaboração, a Fernando Cunha, a mediação para a liberação da matéria para a Parábola Editorial.