Blog da Parábola Editorial

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Mikhail Bakhtin

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Alastair Renfrew, professor inglês de língua e literatura, tem em Mikhail Bakhtin seu segundo livro sobre esse autor. O primeiro é mais especificamente voltado para a literatura e discute uma proposta de estética material considerando as propostas de Bakhtin do ponto de vista de sua contribuição para os rumos atuais da teoria literária ou, mais amplamente, do estudo da literatura (cf. Renfrew, 2006). 

 

Em Mikhail Bakhtin, o autor amplia seu horizonte de considerações, embora permaneça ligado ao discurso literário, que lhe serve de base de exemplificação e explicação didática de pontos que julga mais relevantes. O interesse do autor é destacar “a significação fundamentalmente literária da obra de Bakhtin”, mas também mostrar que a contribuição de Bakhtin é “inteiramente consistente” com as ciências humanas em geral, em vez de se restringir ao literário (p. 19). 

 

Esses dois aspectos mostram, ao ver do autor, que “Bakhtin funde as fronteiras entre as disciplinas sob uma luz inteiramente diferente – uma luz que só se torna plenamente visível depois de Bakhtin” (p. 19). Trata-se de algo que vários estudiosos em várias partes do mundo temos destacado de variadas maneiras. Porque Bakhtin é um filósofo materialista-dialético da linguagem que teoriza com a literatura e com estudos de linguagem, incluindo questões de subjetivação, de identidade etc. 

 

O livro, afora considerações iniciais sobre a vida e a obra de Bakhtin (mas não de Voloshinov nem de Medvedev), e considerações, no final, sobre Bakhtin, literatura e ciências humanas, aborda panoramicamente, nessa ordem, os seguintes pontos:

 

-      a questão das relações eu-outro segundo a teoria dialógica

 

-      a proposta bakhtiniana sobre autor e herói (e arquitetônica) 

 

-      as bases gerais da translinguística (que de certo modo atribui a Voloshinov)

 

-      dialogismo(com ênfase na análise bakhtiniana da obra de Dostoiévski)

 

-      heteroglossia (e poliglossia, termo usado por Renfrew para designar a heteroglossia entre línguas, a interinfluência entre elas)

 

-      carnaval (no romance)

 

-      gêneros (de uma perspectiva mais literária, mas não menos útil, uma vez que mostra a amplitude do conceito no âmbito da teoria).

 

Como diz o autor, o leitor não precisa seguir necessariamente essa ordem em sua leitura, inclusive porque não há propriamente uma progressão no sentido de que cada capítulo dê continuidade ao(s) anterior(s), mas antes uma sucessão de explicações de conceitos a partir de uma base geral apresentada na forma de uma breve demonstração da interinfluência entre Bakhtin, Voloshinov Medvedev.

 

Mikhail Bakhtin não pode ser classificado como um glossário, embora esteja dividido, além de em capítulos cujos títulos são conceitos dialógicos, em seções que lembram verbetes. Do mesmo modo, não pode ser tido como um manual sobre Bakhtin, embora traga em cada capítulo resumos dos pontos em que o autor se concentrou que julga mais relevantes recordar. Por vezes, há também quadros com informações complementares (como uma sobre formalismo russo, por exemplo). Não é um estudo aprofundado da teoria dialógica. Não é um debate sobre ela ou pontos dela. Não é um manual de literatura segundo a teoria dialógica. 

 

Essa série de “nãos” lembra Bakhtin (2010), em “O problema do texto”, dizendo:

 

Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico sobretudo por razões negativas. Na verdade, não se trata de uma análise linguística, nem filológica, nem literária, ou de alguma outra especialização. No tocante às razões positivas, são as seguintes... (p. 329).  

 

Renfrew talvez pudesse dizer que seu livro é, no tocante às razões positivas, uma introdução à teoria dialógica com ênfase nas especificidades da análise literária bakhtiniana, mas também pensando na concepção mais ampla de linguagem, sujeito e discurso para além da literatura. Ele, na verdade, diz que escreveu o livro por admirar Bakhtin como “um pensador exemplar para as ciências humanas contemporâneas” (p. 14), ou seja, o livro é uma espécie de “exercício de admiração” de Bahhtin (para lembrar Cioran).

 

Esse seu caráter de introdução admirativa não permite que especialistas na teoria dialógica o questionem acerca de afirmações e interpretações que estes considerariam polêmicas e/ou contestáveis ao se referir a aspectos específicos das propostas dialógicas, especialmente no que se refere a algumas contribuições de Bakhtin e de Voloshinov para a teoria dialógica em geral ou a certas extensões de conceitos e/ou introdução de novos conceitos para explicar as propostas dos autores.

 

Não se trata de um álibi, mas o que chamamos, coloquialmente, de “regras do gênero”. Uma introdução a um dado tópico de certo modo parafraseia aquilo que introduz e apresenta a concepção do autor da introdução. Logo, não há uma discussão, mas uma versão do autor acerca daquilo que introduz. Isso não significa que não se possa fazer uma leitura crítica, mas seria injusto cobrar do autor algo que ele não pretendia fazer, mais ainda porque ele explica claramente o que pretende fazer.

 

Cabe destacar que o autor aborda o importante tópico da concepção dialógica de discurso de modo geral, e não restrito ao literário, mesmo sendo este último seu foco. Também é relevante dizer que há uma abordagem da questão do sujeito na teoria de Bakhtin, algo que não é muito comum. Essa abordagem é mais prática, e um tanto literária, do que filosófica, uma vez que não é filosófico o interesse do autor ao escrever o livro. 

 

Quanto aos interlocutores-leitores possíveis do livro, cabe detalhamento. 

 

O livro é um texto introdutório a alguns conceitos fundamentais da teoria dialógica, incluindo, naturalmente, as relações dialógicas. Ele pode ser usado com proveito em um curso de graduação. Para isso, o professor deverá, considerando o modo como o livro se organiza, preparar previamente parâmetros de leitura, ou mesmo um roteiro, ou seja, selecionar pontos relevantes e suas conexões, e os apontar como metas de leitura. 

 

Esse roteiro não haverá de seguir a ordem de conceitos apresentada no texto, mas tentar mostrar vínculos entre conceitos que o autor, legitimamente, não buscou estabelecer, uma vez que esse não é um objetivo seu. Parece-me útil fazer perguntas orientadoras, algo como: “De que maneira o autor explica as relações eu-outro segundo Bakhtin?” e, quem sabe, a partir daí, buscar outras definições que ajudem a melhor compreensão do(s) conceito(s) envolvido(s).

 

Para alunos de pós-graduação que não tenham conhecimento da teoria dialógica, ele também pode ser uma introdução. Mas sua maior utilidade para esse público é levantar questões sobre a teoria dialógica em algumas de suas interpretações e promover, à luz de outros textos, discutir criticamente avaliações feitas por Renfrew de seu ponto de vista. A própria relação de livros que o autor consultou traz textos que discordam em alguns pontos de algumas de suas propostas. E autores brasileiros também podem ser trazidos para esse diálogo.

 

Para leitores especializados no campo do estudo do discurso segundo propostas que não as bakhtinianas, o livro traz alguns elementos relevantes e realiza sínteses de um ponto de vista não de especialistas em Bakhtin, mas de um estudioso de língua e literatura interessado em uma dada concepção de discurso. Essa posição exotópica de Renfrew é para esses leitores uma vantagem, pois ele consegue ver e mostrar pontos possíveis de convergência e de divergência entre propostas de análise de discurso que um especialista provavelmente não veria e, por isso, não daria a ver. 

 

Para professores e estudiosos de literatura, ou para alunos de pós-graduação em literatura que se interessem pela teoria dialógica, o livro traz importantes elementos que, unindo o enunciativo e o literário, facilitam o diálogo de teorias literárias com Bakhtin, que não é propriamente um consenso nos estudos literários como teórico dessa área.

 

Trata-se assim de uma obra introdutória, com certa ênfase no discurso literário, mas que destaca contribuições de Bakhtin para as ciências humanas em geral. Um livro que dialoga com vários comentadores de Bakhtin, a par de percorrer as obras da teoria dialógica. Um livro capaz de dialogar com vários interlocutores, bem como trazer ainda outros para o diálogo: neófitos, literatos, linguistas, especialistas em Bakhtin, curiosos em geral etc.

 

Seguindo o que faz Renfrew, que nas páginas finais de seu livro cita e comenta um trecho de Bakhtin que fala da festa do retorno de sentidos aparentemente esquecidos, neste final da resenha citamos e comentamos palavras do autor.

 Ainda que seja um texto introdutório e com alguma ênfase no literário, o livro traz também contribuições relevantes. Um deles é a nosso ver insistir   no caráter não estritamente textual dos gêneros e sua grande produtividade no âmbito dos estudos de linguagem. Nas palavras do autor:

 

Os gêneros (...) são definidos em termos de suas condições particulares de realização e percepção [e diríamos: produção, circulação e recepção]... (p. 194)

 

Logo, o gênero é a categoria na qual as camadas (trans)linguística, literária e social da obra de Bakhtin convergem para aquilo que é quase uma teoria “unificada” do que ele produziu em todos os estágios de sua vida (p. 195).

 

Não poderíamos deixar de concordar com isso. Afinal, dissemos um dia (Sobral, 2009), e sustentamos que: 

 

“...o gênero ... constitui o ponto de chegada prático daquilo que é o dialogismo em termos teóricos – o que explica inclusive o título desta proposta de leitura [isto é, o título do livro: “do dialogismo ao gênero”.

 

Se Renfrew comenta o trecho de Bakhtin sobre o festival de retorno do sentido dizendo “Festival de boas-vindas? Quantidades ilimitadas...”, ou seja, o vir a ser do sentido é infinito (p. 213), comento o dele dizendo: 

 

Gênero como ponto de convergência dos vários aspectos da obra de Bakhtin? Sempre...

 

Serviço:

 

Renfrew, Alastair. Mikhail Bakhtin.Trad.: Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2018, 222 p.

 

FONTE: Linguagem & Ensino, Pelotas, v.21, n.1, p. 463-468, jan./jun. 2018.

 

 

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