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ERRO DE PORTUGUÊS – DE ONDE VEM ESSA IDEIA?

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Marcos Bagno

Para se poder falar de “erro” é preciso ter um contraponto, algo para colocar no outro prato da balança, ou seja, aquilo que é “certo”. Só existe “erro” quando se tem o “certo” à espreita por trás do espelho. No nosso caso, o “certo” é o modelo de língua que vem descrito e prescrito nas obras chamadas gramáticas normativas, um modelo de língua que designamos como norma-padrão (que não deve ser confundida com “norma culta”, mas vamos falar disso outro dia).

A norma-padrão que ainda é objeto de descrição e prescrição das gramáticas normativas do português começou a ser codificada em meados do século 19 e se firmou nos finais do mesmo século. O início e a metade do século 19 foram dominados pela ideologia que passou à história com o nome de Romantismo, um movimento literário, musical, mas também filosófico e político. É por isso que, por exemplo, na conhecida gramática assinada pelo brasileiro Celso Cunha e pelo português Luís Felipe Lindley Cintra (Gramática do português contemporâneo, 1985), eles escrevem que vão trabalhar com “a língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá” — ou seja, língua apenas escrita (nada de estudar a fala), e escrita só por um grupo seleto de falantes.

Desse modo, a norma-padrão é uma entidade linguística congelada no tempo, no espaço e na hierarquia social: fora dela ficaram usos linguísticos anteriores ao século 19 e, claro, também posteriores a ele. Estão aí, portanto, duas das três chaves que nos permitem interpretar a noção de “erro” na língua. Vamos ver.

Uma primeira explicação para a ideia de “erro” se acha numa reação à mudança linguística. Apesar das tentativas e dos esforços dos gramáticos normativos, a língua está sempre em processo de transformação, e isso é inevitável, é da própria natureza das línguas: uma língua, enquanto tiver falantes que a mantenham viva, está sempre mudando (basta comparar a fala, por exemplo, de três gerações de uma mesma família: as transformações saltam aos olhos... ou melhor, aos ouvidos).

Um fenômeno de mudança ocorrido no português brasileiro, por exemplo, foi a total reorganização do quadro de pronomes pessoais, especialmente os da 2ª pessoa. Enquanto em Portugal tu e você têm empregos muito bem delimitados pelas regras de interação social (mais intimidade e menos intimidade, respectivamente) e, por isso, constituem universos de tratamento que nunca se cruzam, no Brasil, como bem sabemos, você se tornou a forma de tratamento “neutra”, geral, ocupando o terreno de uso de tu, que acabou se restringindo a variedades geográficas e/ou sociais específicas. Assim, onde se usa tu também se usa você: não existe área exclusiva de tu no Brasil (e na maioria dos lugares onde se usa tu, as formas verbais são as da 3ª pessoa: tu vai, tu foi, tu quer). Mas a recíproca não é verdadeira: em muitos lugares (de fato, na maioria do país) só se emprega você (por exemplo, no estado de São Paulo, o mais populoso do país, e também em Minas Gerais, o segundo mais populoso). Com a diluição do tratamento formal no informal, as formas oblíquas de tu passaram a ser empregadas em correferência com você: “Eu te vi ontem na rua, te chamei, mas você não me ouviu” (o que é impossível em Portugal). Como esse uso não está previsto na norma-padrão (até porque, em grande medida, ela se baseia nas variedades de prestígio do português europeu), ele é tido como “erro” e rotulado de “mistura de tratamento”. No entanto, é simplesmente uma mudança ocorrida no português brasileiro e já muito bem enraizada nos nossos usos linguísticos, seja qual for a classe social: querer extirpar esse uso é tão inútil quanto enxugar gelo.

Uma segunda explicação para a noção de “erro” é, como vimos, uma reação a fenômenos de conservação de usos linguísticos mais antigos, anteriores à fixação da norma-padrão. Um bom exemplo é o emprego de ele (e flexões) como objeto direto: “A Helena não quis ficar sozinha em casa, por isso eu trouxe ela comigo”. Nada mais natural, espontâneo e corriqueiro na fala das brasileiras e dos brasileiros de todas as camadas sociais e nível de escolaridade. Esse uso está muito bem documentado em fases antigas da língua, na prosa e na poesia: “Rogando-lhe el-Rei por suas cartas ao cardeal, que absolvesse ele e seu reino d’algum caso d’excomunhão ou interdicto” (século 14). Como esse uso desapareceu no português europeu (mas se conservou no português brasileiro e africano), é considerado “errado” pela norma-padrão.

A terceira explicação para a ideia de “erro” é de natureza sociocultural. Num país classificado entre os mais desiguais do planeta, com indicadores sociais estarrecedores, a fala das pessoas mais pobres e sem acesso à escolaridade plena (por meio da qual se tem acesso aos modos de falar prestigiados e às regras da norma-padrão) é incontornavelmente considerada repleta de “erros”. Desse modo, as inovações que verificamos nas variedades menos prestigiadas (como, por exemplo, pronúncias do tipo “trabaio”, “abeia”, “cuié”) estão sujeitas a pesado estigma social (embora seja uma mudança ocorrida em outras línguas, como o francês e o espanhol, nas quais não sofre nenhum tipo de censura). E, claro, isso também se dá com usos que refletem uma conservação de fases mais antigas da língua: formas como fruita, oitubro e luita estão muito bem documentadas em textos antigos (inclusive em Os Lusíadas, publicado em 1572), e o mesmo vale para entonce, somana, menhã, despois, inté, preguntar entre tantas outras.

Assim, as formas inovadoras e conservadoras presentes na fala urbana de pessoas mais letradas e de classe média e alta (e, em sua maioria, brancas), embora consideradas como “erros a evitar”, são toleradas nos usos menos formais sob a famosa alegação de que “pode até estar errado, mas todo mundo já fala assim”. No entanto, quando se trata de inovações e conservações presentes nas variedades linguísticas de pessoas da zona rural ou urbana pobres, com baixo nível de renda e pouca escolarização (e, em sua maioria, não brancas), nenhuma condescendência é permitida: é “erro”, pronto e acabou. Preconceito linguístico e racismo linguístico andam sempre de mãos dadas.

A conclusão é que existem “erros” mais “errados” do que outros. E isso, num país cruel e violento como o Brasil, nada tem a ver com a língua em si, porque a noção de “erro” vai muito além da língua: é a pessoa, no lugar que ela ocupa na hierarquia social, que é acusada de falar “errado”. E a violência maior é exigir que ela fale “certo” sem que o Estado lhe forneça as condições mínimas de acesso à educação, à leitura, à escrita e à cidadania plenas.

 

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