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Causou polêmica nas redes sociais a recente declaração de um famoso youtuber brasileiro sobre a inadequação das obras literárias nacionais canônicas aos estudantes de ensino médio. A meu ver, o problema está na generalização que se faz sobre o adolescente de hoje. 

Comecei a estudar aos 5,5 anos de idade na escolinha do povoado em que eu morava, perdido no meio do semiárido cearense. Era uma escolinha muito pobre, apenas com três salas de aula e uma área aberta para brincar. Não tinha biblioteca, assim como não se encontrava um só livro literário em minha casa. Meus pais, agricultores com ginasial incompleto, nunca tiveram o hábito de ler. 

No entanto, fui uma criança que leu bastante literatura. Na época, quando eu cursava a 4ª série do 1º grau, havia um programa de incentivo à leitura, patrocinado por uma fundação famosa em parceria com os governos estaduais. Nesse programa, era distribuída às escolas uma coleção de livros infantise infanto-juvenis que ficavam expostos em um mostruário afixado na parede da sala de aula. O aluno podia escolher um livro, levá-lo para casa e devolvê-lo quando terminasse de ler. Periodicamente, o mostruário era substituído por outro, com novos títulos. 

Não me recordo de nenhuma das professoras incentivando a leitura, ou realizando projetos de leitura daqueles livros. Eles simplesmente ficavam lá, dentro do mostruário de plástico para quem os quisesse ler. E a simples presença deles na sala de aula era, para mim, o bastante. Havia propagandas na TV divulgando as obras, como se fossem trailers dos livros, e isso me aguçava muito a curiosidade. Foi naqueles tempos que entrei em contato, através dos livros, com Marina Colasanti, Viriato Correia e Jorge Amado, entre muitos outros autores consagrados.

Quando cursava o 1º grau maior, estava no auge da popularidade a série Vaga-Lume, com os eletrizantes romances infanto-juvenis escritos por Marcos Rey, Lúcia Machado de Almeida, Maria José Dupré, Orígenes Lessa, Homero Homem... Por esse tempo, eu já escrevia pequenas histórias e alimentava o sonho de me tornar escritor um dia. Não havia, porém, esses livros na escola em que eu estudava. Tomei conhecimento deles através de meu irmão mais velho, que estudava na cidade, em uma escola que exigia a leitura daquelas obras. Fiquei com os livros do meu irmão depois que ele os leu. Ele me incentivou a lê-los.  

Meu 2º grau foi um desastre! Na época, sem livro didático adotado, a professora de literatura, que tinha apenas uma aula por semana, escrevia na lousa o resumo do conteúdo: início e fim do período literário, obra inaugural, características gerais, principais autores e obras. Atravessei os três anos sem ler um livro literário sequer e sem ser cobrado por isso. Mas eu sabia que os alunos da escola particular do outro lado da praça eram obrigados a ler José de AlencarMachado de AssisAluísio Azevedoe outros vultos do cânone! 

Escolhi cursar Letraspor causa da literatura, mas acabei descambando para a Linguísticadepois de ter achado a disciplina de teoria da literatura I extremamente chata. A professora requeria de todos um conhecimento prévio e uma bagagem de leitura que eu simplesmente não tive, porque não pude ter. Meu amor à literatura só foi retomando no final do curso, quando a professora de literatura cearense, muito apaixonada pelos escritores de nossa terra, me contagiou com sua empolgação.  

Hoje sou professor da escola onde cursei o 2º grau. Temos livros didáticos em todas as disciplinas (exceto educação física), mas a maioria dos meus alunos chega ao 3º ano sem nunca ter lido um livro na vida! Para eles, não tenho coragem de exigir a leitura de IracemaDom CasmurroO cortiço... Porque sei que eles ainda estão por se iniciar como leitores, e não vai ser com um romance escrito há mais de cem anos para o público adulto de seu tempo, em outra sincronia da língua portuguesa, que eu vou obter êxito como formador de leitores. E, nesse ponto, concordo com o youtuber!

Não quero dizer com isso que o adolescente de hoje não está apto a ler os clássicos. Depende da história de cada adolescente como leitor. Certamente, os que foram iniciados na leitura desde a infância, que tiveram quem lesse para eles, que tiveram livros literários em casa ou frequentemente receberam livros como presente de aniversário, estão, aos 15 anos, perfeitamente aptos a ler O guarani. Mas os que não receberam nos primeiros anos de escola nenhum letramento literário e atravessaram o ensino fundamental sem nunca terem lido livro algum... não! E, lamentavelmente, esta é a realidade da maioria de nossos alunos da rede pública.

O incentivo à leitura é escasso em nosso país. São raros os lares em que há alguma estante com livros na sala. Aliás, se você quiser comprar uma estante para livros em nosso país, precisa encomendá-la a um moveleiro, porque não é um móvel comum nos lares brasileiros, principalmente nas classes inferiores. 

É preciso levar essa realidade em conta quando se pretende tornar um adolescente um leitor. Não contribui em nada para a formação tardia do leitor, já com 15 anos ou mais, comentar sobre a literatura trovadoresca e forçá-lo a interpretar o poema em português antigo, nem contextualizar o barroco e o arcadismo para entender os poemas ilustrativos de cada época que o livro didático do 1º ano traz... Nem adianta, nas aulas do 2º ano, elogiar a genialidade do jovem Álvares de Azevedo, cobrir Machado de Assis de reverências, nem filosofar sobre a poesia de Olavo Bilac ou de Cruz e Sousa... E não sonhem, professores, com o encantamento de um aluno desses com Grande sertão: veredas no 3º ano, porque isso não vai acontecer com os que nunca leram literatura antes! 

Muitos de nossos adolescentes sem o hábito de ler, ao lerem em voz alta, se atrapalham com a entonação e pronunciam andara igual ao futuro do presente. Como esperar que entendam trechos como “eu vo-lo cedo” (O guarani) e “fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice, beijei-lhos” (Memórias póstumas de Brás Cubas)?

Para iniciar o adolescente como leitor, é preciso antes sondar a história escolar desse adolescente, saber o que lhe interessa, como ele lê e se quer ler. Caso queira ler, é mais produtivo começar por um livro contemporâneo, preferencialmente de contos ou de crônicas, de linguagem acessível, de temática interessante (o que é algo bastante pessoal) e, principalmente, que condiga com o nível intelectual do discente. 

Se não fosse aquele programa de incentivo à leitura que levou os livros infanto-juvenis para perto de mim, nos idos anos 1980, num povoado perdido no meio da caatinga, eu teria sido mais um jovem a chegar ao fim da educação básica sem ter lido um livro sequer! E hoje, quando a leitura literária compete com formas mais sedutoras de entretenimento, como os bate-papos nas redes sociais e os vídeos hilariantes do Instagram, qual tem sido o estímulo para despertar o hábito de ler em nossas crianças e adolescentes?

Durante o confinamento imposto no início da pandemia, meu pai, que não podia abrir a oficina para trabalhar, me pediu um livro para ler. Eu lhe dei um livro de memórias da cidade, cuja leitura ele concluiu em dois dias! Depois pediu outro... Apenas após o quarto livro sobre a cidade em que moramos foi que lhe dei um romance, e ele adorou. 

Diante da polêmica lançada pelo youtuber, li, nas redes sociais, comentários de professores de literatura revoltados, generalizando que o adolescente de hoje não lê por preguiça. Nenhum culpou o sistema educacional falido que temos, em que um professor não tem previsto em sua rotina de trabalho um momento em particular com cada aluno; que a escola oferece apenas aulas, aulas e mais aulas, em grupos enormes, geralmente com mais de trinta alunos por turma; que na maioria das bibliotecas escolares há apenas um (quando há) exemplar de uma obra recomendada nos livros didáticos; que não há referência de leitores e opções de leitura em casa; que, fora da escola, muitas crianças têm de ajudar os pais no trabalho. Partiram para uma defesa desnecessária dos clássicos, atacaram o youtuber e, por conseguinte, desagradaram aos adolescentes que o seguem e o admiram. 

A iniciação à leitura literária, em qualquer idade, deve partir do leitor, não do livro. Não é a qualidade da obra e sua importância na história da literaturaque se deve priorizar nesse momento, mas o delicado processo de tomar gosto pelo ato de ler. O incentivador deve ter o cuidado de quem está ensinando a voar a um pássaro que vivia engaiolado. Se for pressionado a alçar altos voos, desejará voltar para a gaiola onde confortavelmente vivia e não sentirá falta do mundo desconhecido a explorar lá fora.