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“ELA TESTOU POSITIVO”: QUE SINTAXE É ESSA?

Marcos Bagno

Junto com a disseminação planetária do novo coronavírus, também está se difundindo uma construção sintática que vem sendo usada em várias línguas: testar positivo, como em “ela testou positivo”. Muitas pessoas estão se perguntando de onde vem e se está “de acordo” com a gramática do português. Vamos aproveitar o tempo do nosso necessário, imperativo e incontornável confinamento para refletir um pouco sobre isso.

Trata-se do que a gente chama em linguística de decalque, isto é, a tradução literal de um termo ou construção de uma língua-fonte para uma língua-alvo. Um exemplo seria a locução “ter lugar” (“a reunião teve lugar na última sexta-feira”), decalcada do francês “avoir lieu”, com o sentido de “ocorrer, acontecer” etc.

A construção testar positivo, portanto, é um decalque do inglês to test positive. Esta é uma propriedade sintática da língua inglesa chamada construção resultativa. É uma construção que permite formular uma frase que condensa uma informação a respeito do resultado obtido pela ação desempenhada pelo sujeito. Por exemplo: Peter hammed the can flat. Literalmente: “Peter martelou a lata chata”, mas o que realmente está dito ali é: “Peter martelou a lata até ela ficar achatada”. A construção resultativa tem esse nome justamente porque, repito, expressa o resultado da ação: o resultado de martelar a lata foi ela ficar achatada. Aqui temos um verbo transitivo, isto é, que se complementa com um objeto: martelar a lata. Mas a construção resultativa também pode ter um verbo intransitivo: The lake froze solid, ou seja, “o lago congelou a ponto de ficar sólido”. E é precisamente desse tipo a construção “She tested positive”: “Ela se submeteu a um teste que resultou positivo”. A construção resultativa do inglês, como se vê, permite sintetizar a informação numa frase simples com sujeito+verbo+adjetivo: she + tested + positive.

Qual a função gramatical de positive aqui? Em inglês, positive é um predicativo, isto é, um atributo do sujeito da frase, tanto quanto nas frases em português “Ana parece aborrecida”, “João ficou contente”, “Meus gatos estão famintos” etc. O que chama logo a atenção é que em “Ana parece aborrecida”, o predicativo aborrecida está no feminino, concordando com “Ana”. Não seria o caso então de dizer e escrever “Ela testou positiva”, no feminino também? Sim, seria. Acontece que em inglês os adjetivos não têm flexão de gênero nem de número: positive pode ser traduzido por “positivo”, “positivos”, “positiva” e “positivas”, conforme o caso. E ao decalcar a construção, também se decalcou essa falta de flexão.

Qual seria, então, em português, a classe gramatical de positivo em “Ela testou positivo”? Uma primeira resposta seria: advérbio. É muito comum usarmos adjetivos não flexionados com função adverbial: “Ele fala bonito”, “você come rápido demais”, “é preciso falar grosso com essas crianças” etc. Mas no caso de “Ela testou positivo” é difícil admitir que se trata de um advérbio. Quando dizemos “Ele fala bonito”, “ele” é o sujeito e o agente, é “ele” que “fala” de um modo bonito. Em “Ela testou positivo”, porém, “ela” não é agente, “ela” é paciente (não só gramaticalmente, mas medicalmente também!). “Ela” foi submetida a um teste e esse teste resultou positivo. O que é que tá pegando, então?

Em português e nas outras línguas românicas, o verbo testar é sempre transitivo, isto é, testar “pede” um objeto: “O laboratório vai testar a nova vacina”, “o piloto testou o novo carro”, “ele está dizendo isso para testar você”. Usar testar sem objeto é algo “fora da norma” do português e das línguas aparentadas. Mas em inglês o verbo to test, que também em geral se usa com objeto, pode ser empregado sem objeto com um sentido bem restrito: “Produzir um resultado específico num teste médico, especialmente um teste para detectar drogas ou para detectar o vírus da AIDS” (conforme o Dicionário Oxford, tradução minha, mas veja-se na definição o uso de resultado). É com esse sentido restrito que é possível dizer, em inglês, “she tested positive [for the new coronavirus]”.

Temos assim uma propriedade sintática da língua inglesa, a construção resultativa, que permitiu que o verbo to test assumisse um sentido especial, dispensando o objeto direto. A construção do tipo “Boris Jonhson tested positive” foi importada — tanto pelo português quanto pelo francês, pelo espanhol e pelo italiano (busque testé positive / [ha] testado positivo / testato positivo ) — sem nenhuma adaptação às normas gramaticais dessas línguas, com a opção de manter o adjetivo positive no masculino singular, mesmo quando a pessoa testada é uma mulher ou quando são muitas pessoas. Decalcou-se uma construção exclusiva do inglês que contém um uso muito restrito do verbo to test (sem objeto).

É certo? É errado? É feio? É bonito? O linguista não se interessa (ao menos num primeiro momento) em responder essas perguntas: seu interesse é, diante de um fato novo, tentar compreender o que está em jogo, acionar alguma teoria e mesmo, se preciso, criar uma teoria nova para explicar o fenômeno. O certo é que estamos diante de um fato, de algo que está ocorrendo na língua, e o papel do cientista é tentar compreender e explicar fatos. O destino da construção “Ela testou positivo”, o que a sociedade vai fazer com ela, independe das opiniões pessoais do investigador. São as complexas dinâmicas sociais e culturais de uma comunidade de falantes que vão determinar a adoção ou não de um decalque. A história da língua nos mostra que, ao longo dos séculos, muitos e muitos decalques se introduziram nos idiomas e acabaram por se tornar tão “autênticos” quanto as construções próprias deles. O latim adotou diversas construções do grego, o francês importou várias do italiano, muitas línguas copiaram torneios sintáticos do francês, o português se deixou embeber durante séculos pelo castelhano… e assim por diante. Hoje, o inglês é a língua dominante em todo o mundo, e não admira que os decalques provenientes de lá pipoquem nas outras línguas.

Agora, se você não quiser testar positivo (ou positiva), FIQUE EM CASA!