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Escrever melhor é ler e ler-se

 

Quando comecei a dar aulas sobre escrever, participando de uma grande equipe contratada para ensinar a fazer o que não sabia fazer – redação técnica – para todos os alunos do primeiro semestre da UFRGS, nós lemos uma extensa bibliografia sobre o assunto. A maior parte da bibliografia era americana – e também era a mais colorida e dinâmica de todas –, e os americanos tinham algumas unanimidades, como, por exemplo, uma lista de temas e um esquema prévio, e muito frequentemente sugeriam uma lista de prós e contras. Essa lista de prós e contras fazia certo sucesso entre alguns conhecidos professores de cursinho pré-vestibular, que simplificavam dizendo que a redação devia sempre expor os dois lados da questão: devia ter um parágrafo começando... por um lado..., e o seguinte devia começar... por outro lado... Eram as coisas mais chatas de ler na avaliação das redações do vestibular.

 

essa ideia dos prós e contras na redação é coisa de americano

Eu dei aula de redação alguns anos e falava nesse esquema prévio omitindo, é claro, essa coisa dos prós e contras. Até batia boca com colegas que achavam isso interessante: Isso é coisa de americano, que acha que só tem dois lados – o deles e o dos outros; a gente aqui nasceu sabendo que não pode ter certeza de coisa nenhuma.

 

Só que eu cá nunca fiz um esquema prévio para escrever coisa nenhuma na minha vida e sempre achei que um esquema só ia me atrapalhar, excluindo liminarmente do texto o que não tinha entrado no esquema. Eu prefiro sair escrevendo para deixar que venha o que for puxado pelo que eu já escrevi. É claro que eu só escrevo sobre alguma coisa que eu preciso/quero/tenho de escrever, isto é, eu sempre tenho um assunto; nunca exercitei nenhum tipo de escrita lúdica. Também nunca fui um escritor muito atormentado por aquela musa inspiradora – o prazo de entrega – à qual Luis Fernando Verissimo se refere com tanto terror. Este seriadinho sobre escrever melhor é o máximo de periodicidade que me consinto.

 

Pois eu acho que para escrever melhor a gente tem de escrever e se ler para descobrir o que a gente não sabia que sabia, seja a respeito do que já está lá dentro seja a respeito do que a gente viu lá fora. E vou dar um exemplo radical e dos mais ilustres: eu tenho aqui, em casa, no meu gabinete de trabalho, ao alcance da minha mão, a Caderneta de campo, de Euclides da Cunha, reeditada pelos Cadernos da Biblioteca Nacional em 2009. Nela podemos ler estas anotações feitas durante a campanha de destruição de Canudos, que ele testemunhou como repórter do Estado de S. Paulo:  

 

Os jagunços são inegavelmente uma sub-raça formada, definida, completa, mas fugaz, destinada a desaparecer em breve, atravessando instantaneamente pela História, como que para unicamente mostrar qual seria o nosso destino étnico, se as condições criadas pelo ambiente geral do mundo civilizado não viessem em breve, irresistivelmente, anular em poucos anos, uma lenta fusão feita em três séculos.

 

Tem esta outra também:

 

Em breve pisaremos o solo aonde a República vai dar com segurança o último embate aos que a perturbam.

 

Tempos depois, construindo uma ponte e reescrevendo – para escrever Os Sertões – essas notas e as reportagens que mandara para o jornal, escreveu a propósito dos jagunços:

 

O sertanejo é antes de tudo, um forte...

 

e sobre o último embate da República:

 

Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.    

 

Euclides escreveu o que leu na guerra ao Arraial de Canudos, leu-se e reescreveu-se.

 

 

Se a gente quiser escrever melhor, não pode deixar por menos.

O que a gente escreve serve, principalmente, para ser reescrito, ou seja, não vem ao caso a qualidade do que eu escrevo se o que eu escrevo responde a uma necessidade de registrar, de comunicar e botar ordem, de botar em ordem, de explicar, de explicar melhor. Os lugares-comuns que Euclides escreveu na Caderneta, e mesmo nas reportagens, geraram Os Sertões. É claro que só geraram Os Sertões porque ele não se contentou com o pouco esclarecimento que isso tudo trouxe para ele, mesmo que ele tenha sido elogiado e prestigiado por ter escrito aquelas reportagens que agradaram os que pensavam na faixa daqueles lugares-comuns. Só escreve melhor quem quer, acima de tudo, esclarecer-se e esclarecer, ou melhor, esclarecer esclarecendo-se.

 

Usei ali em cima a expressão “eu cá” depois de ficar sabendo, assistindo na televisão uma entrevista do escritor português Valter Hugo Mãe, que é assim que os lisboetas falam deles mesmos – eu cá – e resolvi experimentar. Gostei: acho que vou adotar. Acho também que a experiência que fiz com o dialeto dos outros – o eu cá dos lisboetas, dos alfacinhas – pode render bem mais do que aquela gracinha. Fico imaginando um personagem chamado Eucah de Lisboa. Grafado desse modo, Eucah parece um nome bíblico. E de Lisboa, tem muito sobrenome que decorre da naturalidade do sobrenomeado; eu, por exemplo, sou Coimbra porque o meu tataravô João Pereira era o de Coimbra para ser distinguido na agência dos Correios do Itaqui, lá na beira do rio Uruguai, de um outro João Pereira, que era de lugar nenhum. O filho mais novo dele já foi registrado como Coimbra, e foi ele que deu origem ao meu avô Heitor Coimbra. Então, Eucah de Lisboa é um nome bem viável. Agora eu posso inventar que ele é primo do Nei Lisboa, um dos maiores poetas desta cidade, pra onde Eucah veio atrás de  uma moça pela qual se apaixonou.

 

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