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Carlos Eduardo Deoclecio

No momento em que alguns governos europeus, como os da Alemanha, Itália, Espanha e de Portugal iniciam um processo de relaxamento da quarentena em função da pandemia do novo coronavírus, “resistir”, do latim resistĕre, e outras formas linguísticas daí derivadas ou com sentido aproximado têm sido usuais, em línguas diversas, nas manifestações discursivas de enfrentamento cotidiano. (Já abro parênteses iniciais: entre os falantes do espanhol peninsular, a palavra usada para relaxamento tem sido desescalada, que dia desses um debatedor de um programa do canal televisivo La Sexta disse não existir. Se ela é empregada, como não existe, hombre? Ah, não está dicionarizada… o que para muitos é correspondência direta da inexistência de uma forma linguística, mesmo que ela esteja em pleno uso e seja bem compreendida entre os pares da comunidade linguística.)

Voltemos a “resistir”. Uma das formas de resistência constatada tem sido a expressão musical, seja nas várias lives de artistas mundo afora, seja, ainda, na escolha de canções representativas para circular pelos diferentes espaços de isolamento social (ou não). Na França, La tendresse (“A ternura”), de 1963, foi a escolhida. Na Itália, Rinascerò, rinascerai (“Renascerei, renascerás”) tem sido propagada. A Espanha, de um modo geral, elegeu Resistiré como uma espécie de hino em meio a essa situação adversa. Ao lado dos aplausos, boa parte da população entoa ou reproduz em algum aparelho o sucesso de 1988 do Dúo Dinámico (Manuel de la Calva e Ramón Arcusa), nas sacadas, varandas e janelas de casas e prédios, às 20 horas, como homenagem e agradecimento ao duro trabalho cotidiano dos profissionais de saúde nas clínicas e nos hospitais, e também como expressão da esperança de um ansiado retorno à vida comum depois do fim da pandemia, ainda uma grande interrogação.

Inspirada no título do discurso do escritor galego Camilo José Cela ao receber o Prêmio Príncipe de Astúrias, em 1987 — “En España, el que resiste gana” (“Na Espanha, quem resiste, ganha/vence”) —, Resistiré tem música de Manuel de la Calva, membro do Dúo, e letra de Carlos Toro Montoro, que a dedicou ao pai, preso durante a ditadura franquista. Há quem diga que Resistiré seria uma versão em língua espanhola da canção I will survive, de 1978, largamente conhecida na voz da cantora norte-americana Gloria Gaynor. No entanto, faltam evidências de que tenha sido mesmo essa a origem de Resistiré, além de a música e a letra em língua inglesa não terem correspondência direta com o produto artístico que conhecemos em espanhol. Mesmo assim, a própria Gloria foi a intérprete da versão oficial de sua canção na lengua de Castilla, intitulada Sobreviviré.

Em função de todo esse contexto, versões atuais de Resistiré podem ser facilmente encontradas numa rápida busca pela internet. Artistas como David Bisbal, Álex Ubago e Vanesa Martín, apenas para citar alguns, se uniram a quase trinta nomes da música espanhola e gravaram um videoclipe desse atual hino nacional com o objetivo de arrecadar fundos para a Cáritas, organização filantrópica e humanitária vinculada à Igreja Católica. No México, também se fez algo semelhante, com a projeção de Resistiré México. Isso sem falar das versões caseiras. Me pareceu curioso quando li no jornal La Voz de Galicia que a infanta Elena de Borbón, uma senhora de 56 anos, irmã do rei Felipe VI e que não é portanto uma criança, mas a filha de reis que não vai herdar a coroa, teria feito um vídeo caseiro com amigos cantando Resistiré e estaria vivendo o estado de emergência e confinamento em casa do mesmo modo que o resto dos cidadãos espanhóis. Do mesmo modo? Lo dudo (“Duvido!”), como diria a canção do grupo mexicano/porto-riquenho Los Panchos.

Nas línguas cooficiais de algumas das Comunidades Autônomas espanholas, é possível encontrar versões para Resistiré, como Eutsiko dut, em euskera (basco), e I resistiré, em catalão. Em galego, não encontrei versão para a canção (apesar de Cristina Eiró, uma galega de Ourense — uma das quatro regiões da Galiza — ter criado Aguantaré, em espanhol, a partir da letra e música de Resistiré), mas uma alternativa para ela: Sector naval, do grupo musical Os Resentidos, em cuja letra ouvimos um “hei, hei, resistirei”. Na voz de alguns integrantes do grupo GIAM (uma espécie de coletivo LGBTQIA+ de Roma), podemos ouvir Resisterò, em italiano. E, ainda, existe uma onda de lançamentos musicais de “canções contra o coronavírus” — é assim que leio nas várias manchetes e textos publicados em páginas espanholas de notícias — de artistas como Alejandro Sanz, Marta Sánchez e Pablo Alborán. Este último, uma febre por aqui. 

Fato é que, para muitos dos que me leem no Brasil, Resistiré se tornou conhecida por causa da cena final do filme Ata-me!, de 1990, roteirizado e dirigido por Pedro Almodóvar. Nessa cena, os personagens de Antonio Banderas (Ricky), Victoria Abril (Marina) e Loles León (Lola) ouvem e cantam Resistiré dentro de um carro. Resistiré me chegou pelas mãos da minha primeira professora de espanhol, Mirtis Caser — a quem devo e agradeço minha entrada na docência de espanhol como língua estrangeira (ELE) ou língua adicional, como se tem preferido dizer recentemente —, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no início dos anos 2000. Num curso de capacitação ofertado aos sábados pela Associação dos Professores de Espanhol do ES (APEES), Mirtis nos apresentou Resistiré como uma estratégia para o trabalho com um dos usos do presente do subjuntivo em espanhol, que é a expressão da ideia de um futuro provável, hipotético, ou outro matiz semântico que o subjuntivo possa apresentar. Que eu me lembre, sempre que precisei desenvolver esse tópico gramatical nas aulas de ELE, Resistiré esteve presente. Para que me entendam melhor, vamos à letra da canção: 

Resistiré

Cuando pierda todas las partidas
Cuando duerma con la soledad
Cuando se me cierren las salidas
Y la noche no me deje en paz

Cuando sienta miedo del silencio
Cuando cueste mantenerme en pie 
(na versão original: mantenerse)
Cuando se rebelen los recuerdos
Y me pongan contra la pared

Resistiré, erguido frente a todo
Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte
Soy como el junco que se dobla
Pero siempre sigue en pie

Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamás me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos
Resistiré, resistiré

Cuando el mundo pierda toda magia
Cuando mi enemigo sea yo
Cuando me apuñale la nostalgia
Y no reconozca ni mi voz

Cuando me amenace la locura
Cuando en mi moneda salga cruz
Cuando el diablo pase la factura
O si alguna vez me faltas tú

Resistiré, erguido frente a todo
Me volveré de hierro para endurecer la piel
Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte
Soy como el junco que se dobla
Pero siempre sigue en pie

Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamás me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos
Resistiré, resistiré

Na letra, há quinze construções com verbos no presente do subjuntivo que, no todo textual/discurso, projetam a ideia de algo que pode vir a acontecer, iniciadas pela conjunção de natureza adverbial cuandopierda / duerma / se me cierren / deje / sienta / cueste mantenerme / se rebelen / pongan / pierda / sea / apuñale / reconozca / amenace / salga / paseNão destaquei as formas soplen e se me rompan, que estão nos mesmos tempo e modo que as anteriores, porque elas não estão circunscritas no mesmo escopo do que agora passo a discutir.

No espanhol em uso, nos mais de vinte países onde é língua oficial (e onde também não é), o futuro do subjuntivo, constitutivo da história da língua e presente em algumas expressões cristalizadas (sea lo que fuere, por exemplo), não faz parte do repertório de língua espontânea de seus falantes. Assim também ocorre em outras línguas neolatinas, como o francês, o italiano e o galego. Entre outros recursos, os usuários dessas línguas lançam mão do presente do subjuntivo (ou também do presente ou do futuro do indicativo, dependendo da construção) quando nós, falantes de português, usamos o futuro do subjuntivo, já que a língua portuguesa, em suas distintas variedades, conservou esse tempo verbal.

Particularizando esse fato para o português brasileiro, percebo uma forte tendência de o falante tentar expressar em espanhol construções subjuntivas como as destacadas da letra de Resistiré decalcando-as do nosso futuro do subjuntivo, inexistente no espanhol em uso. Desse modo, em versos como Cuando pierda todas las partidasCuando duerma con la soledad e Y me pongan contra la pared, o português brasileiro, para além do possível preenchimento da posição de sujeito nos dois primeiros versos, provavelmente entraria com o futuro do subjuntivo na substituição do presente do subjuntivo espanhol: Quando eu perder... / Quando eu dormir... / E me puserem contra a parede.

Existem, de fato, algumas alternâncias no âmbito da variação linguística dos tempos e modos verbais do português brasileiro, como o presente do indicativo versus o presente do subjuntivo (Quer que eu fale com Marta? / Quer que eu falo com Marta?); o imperfeito do indicativo versus o imperfeito do subjuntivo (Achei que era pra caminhar agora. / Achei que fosse pra caminhar agora.); o imperfeito do indicativo versus o futuro do pretérito (Se eu pudesse, tomava mais sol. / Se eu pudesse, tomaria mais sol.), entre outras possibilidades e combinações (para não dizerem que não falei dos portugueses desta vez, saliento que eles fazem uma alternância curiosa para nós, brasileiros, entre esses dois últimos tempos: Gostava que dançasses um pouco. / Gostaria que dançasses um pouco.). Puxei pelo meu inventário, como falante de português brasileiro, e também pelos estudos dos especialistas e não me ocorreu a alternância do futuro com o presente do subjuntivo: quando eu perder / quando eu perca, ou quando eu dormir ao lado de quando eu durma. Digo isso pelo fato de ser esse o recurso utilizado pelas línguas que mencionei anteriormente, já que não dispõem do futuro do subjuntivo em seus usos mais gerais, orais e escritos.

Não posso deixar de registrar, também, que tenho ouvido em conversas informais e lido em comentários de redes sociais, até mesmo de pessoas da área de Letras, que o subjuntivo estaria morrendo no português do Brasil. Essas pessoas estão se referindo, na maioria das vezes, ao presente do subjuntivo na alternância com o do indicativo, como no exemplo dado no parágrafo anterior (Quer que eu fale com Marta? / Quer que eu falo com Marta?). Sim, isso é um fato, principalmente nas variedades do Sudeste brasileiro. Agora se significa o desaparecimento do subjuntivo, é outra história. É preciso localizar os gêneros textuais/discursivos em que isso ocorre, se se dá somente na fala, ou somente na escrita, ou nas duas modalidades, qual o grau de atenção à fala em que as ocorrências emergem, entre outros fatores. Além disso, os outros tempos do subjuntivo, tanto os simples como os compostos, guardadas as devidas proporções e observadas as variantes em concorrência, continuam em pleno uso, mesmo entre pessoas pouco ou nada escolarizadas.

Isso que acabo de dizer não foi tergiversação, mas fruto da reflexão inicial com a estrutura gramatical destacada de Resistiré. Repito, portanto: essa canção tem sido símbolo de manifestação de união, solidariedade e estímulo em algumas partes do mundo e pode continuar sendo uma boa ferramenta para trabalhar os usos do subjuntivo do espanhol em contraste com os do português  — onde ainda houver aulas de espanhol, porque no Brasil tem ocorrido uma gradual retirada dessa disciplina das escolas, públicas e privadas, pela ausência de uma política linguística que mostre o valor do ensino de mais de uma língua estrangeira e a importância que isso tem. Mais um vetor contra o qual precisamos lutar e ao qual devemos resistir!

Ah, no Brasil urge não só resistir ao vírus que causa a Covid-19, mas também à ausência de desenvolvimento cognitivo do presidente do país — ou qualquer nome que queiram dar ao que (in)existe ali. “E daí?” ¡Resistiré! Resistiremos!

 

Abaixo, indico os links das canções mencionadas ao longo do texto. Obrigado pela leitura, e aproveitem as músicas!

La tendresse

Rinasceró, rinascerai

Resistiré (Dúo Dinámico)

Resistiré (2020)

Lo dudo

Resistiré México

Eutsiko dut

I resistiré

Aguantaré

Sector naval

Resisteró