regência

AGRADECER E PERMITIR

Regência é um termo da doutrina gramatical que significa a dependência existente entre duas palavras numa construção, de modo que uma complementa a outra. Uma das palavras “manda” na outra, por isso se usa o verbo reger, que é o que fazem (ou faziam) os reis. Por exemplo, o verbo servir pode reger as preposições a (“ele serve à causa da milícia, à qual pertence”), de (“o presidente serve de pau-mandado ao empresariado que quer destruir os direitos trabalhistas”), para (“o atual presidente só serve para ser jogado no lixo da história”), ou preposição nenhuma (“ele serve mentiras e embustes a seu gado cativo, que zurra e aplaude”).

Os nomes e os adjetivos também regem preposições (opção por; suscetível de; compromisso com; dependência para com etc.), mas é a regência verbal a que sempre tem merecido mais atenção da parte da tradição gramatical e das instâncias normativo-prescritivas: qual é a gramática ou livro didático que não traz sua tabela de regências verbais “corretas”? Tabelas, aliás, que se repetem há décadas, prova evidente de que, se uma regra gramatical não encontra eco na intuição linguística das falantes, é porque a língua mudou, e não adianta tentar ressuscitar pterossauros fossilizados.

Sim, as regências verbais mudam, como muda tudo o que existe na língua com o passar do tempo, por obra e graça do uso intenso e ininterrupto que cada uma de nós e todas nós juntas fazemos dela. Muito tempo atrás, por exemplo, se dizia “resistir o inimigo” e não “resistir ao inimigo” como dizemos agora. O mesmo com “perguntar alguém”, “merecer de alguma coisa”, “jurar de alguma coisa” entre várias outras que hoje soam estranhíssimas aos nossos ouvidos.

Por que a língua muda? Porque não é a língua que muda: somos nós, falantes, que mudamos a língua. E por que mudamos a língua? Porque nós não falamos a língua simplesmente: o tempo todo, nós analisamos e reanalisamos a língua que falamos – sem ter consciência disso, é claro. Fazemos inferências, deduções, abduções, metáforas, metonímias, analogias, hipercorreções, gramaticalizações… toda uma coleção de processamentos cognitivos que são misteriosamente ativados e compartilhados por toda a comunidade falante. O que uma tradição empedernida insiste em chamar de “erro” é, de fato, o resultado de algum ou mais de um desses processamentos. E a água mole da mudança vai batendo tanto na pedra dura da norma-padrão (ou pedrão?) tradicional até que ela se fura e deixa escoar a novidade: os bons dicionários aceitam hoje em dia sem problema a regência “o artigo visa discutir o problema...” sem o a da regência mais antiga (“o artigo visa a discutir o problema...”), a regência implicar em, namorar com, e falta um fio de cabelo para aceitar de vez o assistir o filme (espero ainda estar no planeta para assistir esse espetáculo!).

Hoje em dia estão em interessante processo de mudança as regências de dois verbos muito empregados: agradecer e permitir. Eu, que sou humana como qualquer outra pessoa, confesso que sinto uma veleidade de arrepio quando alguém diz ou escreve “gostaria de agradecê-lo pela presença”. É a reação normal de quem, por não se reconhecer na fala das gerações mais novas, sente estranheza e algum desconforto (o desconforto de saber que o tempo que falta para viver é muito menor do que o já vivido).

A construção clássica do verbo agradecer é: agradecer + a alguém + algo. Por exemplo: “Nós agradecemos às eleitoras e aos eleitores estadunidenses a não reeleição do psicopata Trump”. Um objeto indireto introduzido pela preposição a (às eleitoras e aos eleitores) pode ser retomado mais adiante pelo pronome lhes: “Queridas eleitoras e eleitores estadunidenses: nós lhes agradecemos a não reeleição do psicopata Trump”, isto é, agradecemos a vocês. Mas o que se ouve e se lê atualmente, com cada vez mais frequência, é: “nós os agradecemos”. Essa regência transitiva direta já se cristalizou na fórmula “gostaria de agradecê-lo/la. Como explicar isso? Vamos arriscar algumas hipóteses.

Para início de conversa, o pronome lhe, no português brasileiro falado, nunca se refere a uma 3ª pessoa. Um enunciado como “Ontem encontrei o Pedro e lhe disse que você está na cidade” causa um pequeno curto-circuito na comunicação. No português brasileiro falado, lhe se refere única e exclusivamente a você, tanto como objeto direto (“Ontem lhe vi na rua, lhe chamei, mas você não ouviu!”) quanto objeto indireto (“Vou lhe telefonar ainda hoje”), e isso nas variedades linguísticas regionais em que se emprega lhe, pois sabemos que a correlação pronominal mais amplamente usada por nós é você → te (“Você sabe que eu te admiro muito!”), por mais que alguns profetas do apocalipse continuem verberando contra a “mistura de tratamento” que só existe na cabeça deles. Por sua vez, o plural lhes nunca-jamais ocorre na nossa fala espontânea, nem mesmo na das pessoas que usam lhe no singular. O plural lhes divide a mesma prateleira do museu que abriga os imperativos negativos do tipo “não fales, não grites, não venhas”, que também jamais ocorrem na fala espontânea brasileira. A qualidade de corpo estranho do lhe no português brasileiro falado pode ser parte da explicação.

Mas, dirão vocês, também os pronomes o/a/os/as constituem fósseis linguísticos na nossa língua do dia a dia, ainda mais em suas formas alternativas -lo/-la/-los/-las. É verdade, mas apesar disso eles se conservam em estilos falados ou gêneros escritos mais formais, especialmente com os infinitivos verbais (“É um prazer conhecê-lo” / “A diretora vai recebê-la amanhã” etc., sempre se referindo a você).

Outra possível explicação pode estar no fato de nós, falantes de português brasileiro, termos abandonado a preposição a na maioria das circunstâncias em favor de para (entreguei a encomenda a ele → entreguei a encomenda para ele) ou em (fui ao cinema → fui no cinema). Sendo a preposição a e o pronome lhe de uso muito restrito na fala espontânea, a construção com o verbo agradecer foi remodelada para compensar a ausência de ambos.

Além de evitar o lhe, a nova regência de agradecer pode se dever também ao uso cada vez mais intenso da preposição por. Em lugar de “agradeço aos presentes a gentileza de terem comparecido” também é possível dizer “agradeço aos presentes pela gentileza de terem comparecido”. Eliminando a preposição a: “agradeço os presentes pela gentileza de terem comparecido”. Bingo?

Está acontecendo com agradecer o que aconteceu com o verbo pagar. A construção clássica pagar + algo + a alguém, também se reformulou em pagar + alguém, com o objeto direto subentendido: “Você já pagou [o salário] ao porteiro?” → “Você já pagou o porteiro?”. O salário e o porteiro são reanalisados como objetos do mesmo tipo, diretos no caso. Seria então um caso de braquilogia, isto é, de encurtamento da expressão para dar mais concisão ao discurso.

O caso de permitir vai em outra direção. Na construção clássica temos: permitir + algo + a alguém ou também na ordem permitir + a alguém + algo, especialmente se o algo for um infinitivo verbal: “Ela permitiu aos alunos usarem dicionário na prova de tradução”. Aqui, de novo, poderíamos substituir aos alunos por lhes: “Ela lhes permitiu usar dicionário”. Mas vêm aparecendo cada vez mais coisas como: “Ela os permitiu usar dicionário”. Se você jogar “isso o permite” num mecanismo de busca na internet, aparecem milhares de ocorrências (fui lá ver: apareceram 78.000, contra 54.400 para “isso lhe permite”).

Para mim, o que está em jogo aqui é a inclusão de permitir no clube dos verbos chamados causativos-sensitivos. Os veteranos do clube são mandar, fazer, sentir, deixar, ouvir e ver (um verso alexandrino perfeito, o que facilita a decoreba!). Esses verbos são especiais porque exigem um pronome acusativo (no caso das 3ªs  pessoas: o/a/os/as) que vai servir de objeto do verbo causativo-sensitivo e de sujeito do outro verbo, no infinitivo (ou às vezes no gerúndio): “Eu não os deixei entrar”. Esse os é objeto de deixar e sujeito de entrar. É uma construção que vem desde o latim e se transmitiu a todas as línguas românicas (e também existe em inglês), um caso excepcional porque o/a/os/as são sempre objeto direto, nunca sujeito, a não ser nessas construções com esses verbos.

Pois me parece que o verbo permitir, que pode ser interpretado como equivalente a deixar (eu te deixo entrar → eu te permito entrar), também está recebendo o mesmo tipo de construção sintática dos outros verbos causativos: eu o fiz saber / eu o deixei saber / eu o permiti saber...

O divertido com esses verbos causativos-sensitivos é que, como todo mundo sabe, na fala espontânea nós não usamos as formas oblíquas o/as/os/as, mas as formas retas: eu deixei ele entrar / eu fiz ela aceitar a decisão / eu vi eles chorando... O mesmo vale para eu: “deixa eu ver!”, nunca “deixa-me ver!”. Um caso único nas línguas da família românica. Certa vez ouvi numa conferência um importante linguista brasileiro dizer: “O resultado dessa pesquisa permite eu afirmar com segurança que...”, exatamente como “Essa pesquisa deixa eu afirmar com segurança que...”. No entanto, quando se trata da escrita formal — último reduto dos oblíquos o/a/os/as —, o que a gente encontra é “seu desprezo pelo povo é o que o permite dedicar-se apenas à sua família de criminosos”

Em “Tempo Rei”, Gilberto Gil canta: “Não me iludo / tudo permanecerá do jeito que tem sido / transcorrendo / transformando / tempo e espaço navegando todos os sentidos”. É uma bela quebra de expectativa: em lugar de dizer que “nada permanecerá do jeito que tem sido” porque tudo se transforma, ele diz que “tudo permanecerá do jeito que tem sido”, e esse jeito é a mudança. E isso vale para a língua também, é claro: a língua permanecerá sempre do jeito que tem sido, e esse jeito é a transformação constante. As novas regências, ao que parece, já estão aí para ficar, até mesmo por sua presença na escrita formal, que é o ponto final de aceitação de uma mudança linguística. Apesar das minhas veleidades de arrepio... senão por isso mesmo.