Qual_politica_linguistica

quem mexe na(s) língua(s)?

Parece existir um desentendimento antigo entre linguistas e não linguistas em relação à língua, um objeto que, mesmo por motivos diferentes, suscita o interesse de todo mundo. A linguagem é assunto de discussão e objeto de polêmica em qualquer sociedade, pois não há como escapar da normatividade que rege os usos da língua. As práticas sociais que Deborah Cameron (1995) chama de “higiene verbal” existem sempre que as pessoas refletem criticamente sobre os usos linguísticos, próprios ou alheios. Embora muitas opiniões sobre as convenções linguísticas se manifestem realmente sob a forma da intolerância, isso não invalida a importância das avaliações das práticas de linguagem, que fazem parte da vida social.

“a voz do linguista, que invoca a neutralidade da ciência na observação crua dos fatos, se for convocada, costuma levantar vagas de incompreensão, e mesmo de indignação, pelo seu aparente relativismo”

O desentendimento entre especialistas em linguagem e leigos se manifesta de muitas maneiras: das mais banais, quando alguém pergunta ao linguista, ao saber do seu ofício no momento das apresentações, quantas línguas ele fala, até as mais sofisticadas, quando surge um conflito normativo qualquer por causa de novos usos ou pela presença súbita sob os holofotes, na mídia, no ensino ou nas artes, de formas sem prestígio que, para a maioria das pessoas, não deveriam estar ali. Nesses casos, a voz do linguista, que invoca a neutralidade da ciência na observação crua dos fatos, se for convocada, costuma levantar vagas de incompreensão, e mesmo de indignação, pelo seu aparente relativismo. Seu parecer como especialista não focado na prescrição, mas na descrição e explicação dos fatos, segundo a lógica interna do sistema linguístico, é entendido frequentemente como uma espécie de apologia da desordem. 

“o livro contém mais perguntas do que respostas”

O risco de publicar um livro que tem como título uma pergunta é que o leitor recorra a ele pensando que nas suas páginas se encontra a desejada resposta. Para contornar esse risco, resolvi começar fazendo este esclarecimento, logo no início: o livro contém mais perguntas do que respostas. Qual política linguística? Desafios glotopolíticos contemporâneos tem dois objetivos que, se forem atingidos, permitirão duas leituras complementares. Pretendo, em primeiro lugar, apresentar de uma maneira ordenada as principais linhas de interesse, orientações teóricas, fundamentos e conceitos da política linguística como área de pesquisa dentro dos estudos linguísticos. Sem querer escrever uma espécie de manual que dê conta de todas as contribuições feitas na área, eu gostaria que o livro pudesse funcionar realmente como uma introdução para aquelas pessoas que se interessam pela abordagem política da linguagem.

Ao mesmo tempo, quero elaborar uma reflexão sobre os principais desafios impostos à relação entre linguagem e política nos tempos atuais. Com esse objetivo, adotei a perspectiva glotopolítica e uma atitude interrogativa. Além do título, Qual política linguística?, formulado como pergunta, cada capítulo termina, propositadamente, com uma interrogação, funcionando mais como ponto de partida que possa instigar novas reflexões do que como conclusão fechada em si mesma. 

“o livro pudesse funcionar realmente como uma introdução para aquelas pessoas que se interessam pela abordagem política da linguagem”

A pergunta sobre a política linguística do título abre também duas vias de interpretação, como resultado da dupla face da área, já tão difícil de encaixar, por conta de seu caráter interdisciplinar, nas classificações tradicionais. É uma pregunta sobre a área disciplinar, que interroga sobre o que se entende por pesquisa ou estudo em política linguística, e é também um questionamento sobre as ações ou as intervenções políticas sobre a realidade da linguagem. Tento articular, de alguma maneira, essas duas faces por meio da perspectiva teórica adotada, a da glotopolítica. Para essa perspectiva, a dimensão ética e política da pesquisa está sempre em evidência, e o pesquisador é obrigado a prestar atenção às implicações ideológicas de suas opções teóricas e metodológicas e aos efeitos sociais de suas propostas. 

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Além das referências ao galego, e entre exemplos tomados das mais diversas situações sociolinguísticas do mundo, é perceptível no livro todo um foco maior nas políticas referentes às línguas espanhola e portuguesa. A referência ao Brasil, nesse sentido, é constante, tanto quando trato da organização política do multilinguismo dentro dos Estados como quando abordo questões relativas aos problemas normativos. Também nas referências bibliográficas é evidente a presença maciça de linguistas brasileirxs ou que trabalham no Brasil, com muitxs dxs quais dialogo aqui por escrito. Sem esse diálogo, este livro não seria possível. Muitas reflexões que aqui se expressam surgiram, na realidade, em meio aos muitos debates acadêmicos de que pude participar nos últimos anos, graças às oportunidades que me ofereceu meu trabalho na universidade pública brasileira. Também minhas aulas na pós-graduação e o diálogo com estudantes e orientandxs me permitiram organizar ideias, descobrir possíveis inconsistências e perceber questões que antes não tinha contemplado. 

“o pesquisador é obrigado a prestar atenção às implicações ideológicas de suas opções teóricas e metodológicas e aos efeitos sociais de suas propostas”

Para a pesquisa glotopolítica, a identificação dos agentes de intervenção sobre a linguagem, situados em diversos planos da vida social, e a análise dos sistemas ideológicos implicados em suas ações são um desafio fundamental. A reflexão sobre nosso próprio papel como pesquisadores na realidade que pretendemos entender e o engajamento democrático que implica defender a participação de todo mundo, em condições de igualdade, no debate glotopolítico, serão sempre o nosso maior desafio: 

Diga-me o que você pesquisa e eu lhe direi quem você é!