PORTUGUÊS BRASILEIRO (OUTRA VEZ)

 

EM PAZ COM A LÍNGUA

 

Num evento recentemente ocorrido em São Paulo, o linguista Carlos Alberto Faraco disse que a sociedade brasileira precisa “fazer as pazes com a sua língua”. Conforme ele explicou, desde o século XIX, a partir da Independência, se instaurou no Brasil uma mentalidade profundamente conservadora no que diz respeito à língua. O país se tornou independente de Portugal, mas o espírito colonizado e bajulador da Europa por parte das oligarquias dominantes impediu que as características linguísticas propriamente brasileiras fossem aceitas com tranquilidade.

 

Portugus-brasileiro-e-sociedade-no-Brasil.png

 

A razão disso está no racismo visceral que tem caracterizado desde sempre as relações sociais no Brasil, um país em que o regime escravocrata perdurou por mais de 350 anos. Querendo se distanciar ao máximo da maioria da população, essencialmente negra e mestiça, a reduzida camada dominante branca se empenhou em adotar um modelo linguístico o mais próximo possível do padrão estabelecido em Portugal, um padrão que em suas grandes linhas representava os usos autênticos das classes mais letradas de lá.

 

Daí surgiu a “cultura do erro”, uma obsessão por condenar e perseguir qualquer manifestação verbal diferente daquele modelo, que em nada correspondia aos usos reais do português no Brasil, nem sequer aos usos das próprias oligarquias dominantes. Uma situação radicalmente oposta à que se verificou nos Estados Unidos: tão logo proclamada a independência, em 1776, ocorreu por lá um forte movimento em favor do “inglês americano”, liderado pelo educador e dicionarista Noah Webster. Quando foi produzir seu famoso dicionário e seus livros didáticos, Webster fez questão de oferecer sempre exemplos tirados dos usos caracteristicamente americanos. Isso revela bem as diferenças na formação histórica dos dois países: enquanto nos Estados Unidos ocorreu uma revolução em que toda a população lutou para ficar independente, no Brasil a independência foi proclamada pelo representante da Coroa portuguesa, sem praticamente nenhuma participação popular. O príncipe D. Pedro ia herdar de qualquer maneira o vasto território brasileiro, tudo o que ele fez foi acelerar o processo. E ficou tão “independente” que acabou retornando a Portugal para defender o trono contra as investidas do próprio irmão.

 

é irracional, além de profundamente autoritário, recusar o fato óbvio de que o português brasileiro é uma língua que se distancia cada vez mais do português europeu

 

Passado tanto tempo, Faraco tem mesmo razão. É irracional, além de profundamente autoritário, recusar o fato óbvio de que o português brasileiro é uma língua que se distancia cada vez mais do português europeu. Nenhuma língua humana fica parada no tempo. A mudança linguística é da própria natureza das línguas. O português de Portugal conheceu importantes mudanças ao longo dos últimos quinhentos anos, assim como o português brasileiro. Mas em cada uma dessas línguas as mudanças seguiram caminhos diferentes: ocorreram transformações no português europeu que não afetaram o português brasileiro e vice-versa. E não podia ser diferente.

 

Fazer as pazes com a nossa língua é aceitar, por exemplo, a perfeita legitimidade do uso do verbo ter com sentido existencial no lugar de haver. É não se assustar com o uso de ele como objeto direto (“O Jairo? Conheço ele há muito tempo!”). É abandonar as incontáveis regras e sub-regras para a colocação pronominal e reconhecer que no português brasileiro só existe uma: a próclise ao verbo principal, e que iniciar frase com pronome oblíquo é o que existe de mais natural para nós. É deixar de insistir numa regência indireta do verbo assistir (“assisti ao filme”), porque ela não tem ressonância na intuição gramatical da nossa gente. É aceitar com tranquilidade que a diferença entre este e esse deixou de fazer sentido para nós, que usamos quase exclusivamente esse (coisa, aliás, já devidamente registrada pelos nossos gramáticos de formação tradicional).

 

fazer as pazes com a nossa língua é aceitar, por exemplo, a perfeita legitimidade do uso do verbo ter com sentido existencial no lugar de haver

 

É não perder tempo com o ensino de uma “formação do imperativo” que não corresponde a nenhuma das variedades faladas no Brasil, onde o que existe é uma distribuição regional entre as formas derivadas do subjuntivo (Norte-Nordeste) e as formas derivadas do indicativo (Sudeste-Sul-Centro Oeste), mas com ampla possibilidade de entrecruzamento. É não se assustar com o uso de te em correlação com você (“Você sabe que eu te amo”), porque qualquer outra combinação pronominal soa, no mínimo, ridícula (“Você sabe que eu o amo” não exprime nada do sentimento que se quer expressar). É perceber o quanto de racismo está embutido na expressão “mistura de tratamento”, que faz pensar de imediato na “mistura de raças” tão abominada pela oligarquia dominante. É deixar de lado a regra ilógica de concordância no plural das construções com o pronome se, porque essa história de “passiva sintética” e “índice de indeterminação do sujeito” é um flagrante equívoco de análise: num enunciado como “Aqui se come, aqui se bebe, mas aqui também se lava os pratos”, é óbvio que o mesmo se que come e bebe é o mesmo se que lava os pratos! A concordância “aqui se lavam os pratos” simplesmente rompe com a coesão e a coerência do enunciado!

 

Fazer as pazes com a língua é também abandonar uma série de invencionices que a escola vem tentando impor há muito tempo. Que invencionices são essas? A bobagem de que é preciso evitar o mas e substituí-lo por porém, entretanto, contudo etc. Que em lugar de que é melhor usar o qual. Que só se deve escrever em um, em uma e não num, numa, contrações que existem na língua há setecentos anos ou mais! Que o chique é havia feito e não tinha feito, uma falsa sofisticação, já que em todos os demais tempos compostos só se emprega ter. Que esse mesmo verbo ter é muito simplório e que o bacana é usar possuir a torto e a direito. Que o verbo estar, um dos mais importantes da língua, deve ser evitado em favor de encontrar-se. Aí a gente chega diante de um elevador e topa com o já famoso texto, exemplo supremo da deselegância de estilo: “Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”. Além do capenga encontra-se ainda tem o mesmo usado como pronome, quando em cem por cento dos casos bastaria um ele ou até nenhum pronome, já que o verbo conjugado em muitas ocasiões é suficiente para a identificação do sujeito.

 

é muito difícil fazer as pazes com a língua numa sociedade visceralmente antidemocrática como a brasileira

 

Vamos fazer então as pazes com a nossa língua? Admitir, sem medo de ser feliz, aquilo que é tipicamente nosso e, ao mesmo tempo, abandonar as falsas sofisticações que não têm nenhum fundamento?

 

Infelizmente, é muito difícil fazer as pazes com a língua numa sociedade visceralmente antidemocrática como a brasileira. Enquanto nossas relações sociais forem marcadas pela escandalosa desigualdade de acesso aos bens econômicos e culturais, enquanto as mais altas esferas do poder forem ocupadas, como hoje, pelo que existe no Brasil de mais sórdido, reacionário, corrupto e corruptor, enquanto — sobretudo nos últimos anos — uma mentalidade abertamente fascista dominar os principais meios de comunicação de massa e causar estragos na opinião pública, as relações linguísticas da sociedade brasileira permanecerão ditadas pela intolerância, pelo autoritarismo e pela ânsia de garantir a exclusão da maioria.