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MINORITÁRIA OU MINORIZADA?

 

 

Um conceito importante nos estudos linguísticos atuais é o de “língua minorizada”. É diferente de “minoria linguística” porque o que está em jogo não é a quantidade de falantes, mas a situação política e social de sua língua.

 

 

É fácil entender a diferença entre “minoritário” e “minorizado” quando se aplica esse segundo conceito a outros aspectos da vida social. Por exemplo, a maioria da população brasileira é formada por pessoas não-brancas, principalmente negras, mas elas são tratadas como uma minoria desprovida de direitos, sem acesso aos bens sociais, econômicos e culturais, além de vítimas de genocídio sistemático: a expectativa de vida de um jovem negro no Brasil é de dezessete anos em média. A população não-branca do Brasil é, portanto, minorizada.

 

A população não-branca do Brasil é minorizada.

 

O mesmo vale para as mulheres: são mais da metade da população, mas sofrem discriminação de todo tipo, além da violência simbólica e da eliminação física pura e simples: a cada hora e meia uma mulher é assassinada no Brasil.

 

Pessoas negras e mulheres (e ainda mais as mulheres negras) são minorizadas, isto é, tratadas como se fossem inferiores, marginalizadas e perseguidas.

 

Há minorias que não sofrem nenhum tipo de minorização.

 

É claro que a minoria quantitativa também pode ser minorizada: é o caso de gays, lésbicas e transgêneros, que são uma minoria em termos quantitativos e também são minorizados, num país campeão mundial de assassinatos dessas pessoas. Por outro lado, há minorias que não sofrem nenhum tipo de minorização, como a meia dúzia de homens brancos que, juntos, acumulam a mesma riqueza produzida por cem milhões de brasileiros.

 

Assim, quando se fala em língua minorizada, está em jogo o status social e político dessa língua, o valor simbólico associado a ela. É o caso do galego, por exemplo, na Espanha, uma língua que é maioria no território em que é falada (a Galiza), mas que não tem prestígio, que sofre todo tipo de marginalização por causa da pressão e da opressão exercidas pelo castelhano, a língua dominante e dominadora, que goza de toda a proteção oficial. O mesmo vale para o catalão e o basco. Os falantes monolíngues de castelhano desprezam essas línguas, acham que são “feias” e até “inúteis”, pois bastaria que todo mundo falasse espanhol para o mundo ser perfeito. Esse tipo de preconceito linguístico, que no fundo é um forte preconceito social, é o que explica, entre outras coisas, o desejo que os catalães têm de se tornar uma república, independente do Estado espanhol, que sempre tratou a Catalunha de forma repressora, proibindo a língua em diversos momentos históricos e desrespeitando as especificidades culturais de sua população.

 

Quando se fala em língua minorizada, está em jogo o status social e político dessa língua, o valor simbólico associado a ela.

 

Pois o português brasileiro é um tipo muito especial de língua minorizada. Falado por mais de duzentos milhões de pessoas, suas características próprias são alvo de toda sorte de preconceito e discriminação da parte de uma reduzida elite de letrados que se julgam detentores de uma “língua certa” que, de fato, nem eles mesmos dominam, mas defendem, porque ela serve de arame farpado para separar os bem falantes dos que falam “tudo errado”, isto é, a imensa maioria da população.

 

Isso fez surgir, na cultura linguística brasileira, uma série de crenças sem nenhum fundamento a não ser a discriminação social tão profunda no nosso país. Ideias como a de que “brasileiro não sabe falar português”, de que “só os portugueses falam bem a língua, que afinal é deles” ou de que “os brasileiros corromperam a pureza da língua de Camões”, entre outras. É uma ideologia do mesmíssimo tipo da que sustenta que as mulheres são “inferiores” aos homens, que os índios são “preguiçosos”, que os homossexuais são “doentes” (e, pior, que podem ser “curados”), que os cultos religiosos de matriz africana são “feitiçaria” ou “coisa do demônio”, que as pessoas pobres são pobres porque não querem trabalhar etc.

 

português brasileiro é um tipo muito especial de língua minorizada. Falado por mais de duzentos milhões de pessoas, suas características próprias são alvo de toda sorte de preconceito e discriminação.

 

O mais perverso dessas crenças sobre a língua é que elas estão de tal modo arraigadas na cultura que quase ninguém as considera como formas de exclusão social. Já faz algum tempo que o sexismo, o racismo, a homofobia e outras formas de intolerância vêm sendo denunciadas e combatidas, mas a exclusão pela linguagem raramente entra no discurso em favor da democratização das relações sociais no Brasil: ao contrário, mesmo entre pessoas com posicionamentos progressistas, a ideia de que existe uma única forma “certa” de falar ainda tem muito vigor.

 

É um paradoxo dizer que a língua de mais de duzentos milhões de pessoas é um tipo de “minoria”. Mas o paradoxo se dissolve quando lembramos que o Brasil está entre os dez países mais injustos do planeta. A minorização linguística do português brasileiro existe e é só mais uma das incontáveis facetas do terror social que sempre dominou o país e que agora vai se tornando também terrorismo de Estado.