Pedagogia-da-variao

Língua, diversidade e ensino

 

Poucas questões desafiam tanto um linguista quanto o confronto, frequente em diversos contextos, entre a natureza intrinsecamente descritiva e não normativa da sua disciplina – que constitui um dos principais pontos programáticos fundadores da linguística moderna – e a necessidade de se contribuir, em momentos e circunstâncias específicos, para a definição e o estabelecimento de uma norma fortemente (e justificadamente) requerida por alguns meios, como é o caso muito particular do meio escolar.

Provindo de um domínio epistemológico que, nas palavras de Blanchet (Introduction à la complexité de l’enseignement du français langue étrangère. Louvain: Peeters, p. 45), se constrói como uma ciência intrinsecamente tolerante e democrática, por valorizar e respeitar a variação e as variedades – a diferença, em suma –, os linguistas o forçados a reconhecer, porém, que, fora do âmbito mais estrito da sua investigação, continuam a prevalecer ambientes em que algum esforço normativo é, se o inevitável, pelo menos recomendável. O envolvimento profissional dos linguistas, sob condições bem definidas, em atividades de padronização requeridas pelo meio envolvente é, como veremos, desejável e constitui-se como uma garantia de que essa padronização responde a critérios de qualidade e de aplicabilidade pedagógica que, sem o contributo informado dos linguistas, podem o ficar devidamente salvaguardados.

A escola – no ensino da língua (materna ou não) – é, entre outros e conformefoi referido, um desses contextos. A necessidade de uma padronização cuidadosa

(i) que reconheça o carácter e a motivação intrinsecamente extralinguísticos da definição de uma “norma padrão”, 

(ii) que não legitime o estigma social adveniente do uso de normas não padrão em variadas circunstâncias,

(iii) que sustente a valorização relativa da norma padrão em ambiente escolar única e exclusivamente no argumento do efeito nivelador da escola democrática, que teoricamente coloca todos os estudantes no mesmo patamar de igualdade de oportunidades sociais e profissionais à saída da escolaridade obrigatória, reconhecendo que o conhecimento e o domínio de certos aspetos da norma padrão, em certas situações, pode facilitar e favorecer a integração dos alunos em situações socioprofissionais mais qualificadas, 

(iv) que aceite as normas não padrão como objetos de estudo,

(v) e que as respeite escrupulosamente como marcas identitárias dos seus falantes que não podem ser destruídas, proibidas ou sequer deslegitimadas,

 

traduz-se num equilíbrio muito difícil de alcançar. Conforme tentámos pôr em relevo em algumas reflexões anteriores sobre este mesmo assunto (cf., p. ex., Veloso 2007), a procura e a construção deste equilíbrio contar-se-ão talvez entre os desafios mais difíceis e exigentes do professor de português. Procurar-se-á desejavelmente alcançar um compromisso entre variedades regionais e sociais – por vezes em conflito grupal acentuado, por vezes objeto de interpretações divergentes dentro da própria linguística – e estes compromissos pressupõem sempre caminhos difíceis de percorrer, nos quais se entrecruzam muito frequentemente variáveis não só linguísticas como também sociais, culturais, étnicas, históricas e políticas, para citar somente as mais relevantes.

sendo o linguista, por natureza, um observador não prescritivo, como pode ele intervir na definição, p. ex., de uma norma escolar?

Através de campos de estudo como a sociolinguística, a linguística educacional e a política linguística, o linguista pode, de mero observador de uma realidade supostamente externa, passar a um papel mais interventivo que não se traduz nem se confunde, porém, com nenhum tipo de quebra de neutralidade e objetividade exigíveis a qualquer investigador de qualquer área científica (cf., p. ex., Hult & Johnson (Eds.) 2015). Aqui reside uma espécie de dilema, que temos explorado brevemente em textos anteriores (J. Veloso, Veloso, J. 2007. Variação dialectal e sociolectal na aula de Português Língua Materna. Algumas reflexões e sugestões metodológicas. In: R. Bizarro (Org.). Eu e o Outro. Estudos Multidisciplinares sobre Identidade(s), Diversidade(s) e Práticas Intercultu- rais. Porto: Areal, 262-268): sendo o linguista, por natureza, um observador não prescritivo, como pode ele intervir na definição, p. ex., de uma norma escolar? O principal argumento que apresentámos em J. Veloso, Peut-on apprendre la variété? Autour de quelques dimensions de la fixation et la transmission d’une norme phonétique et du rôle des linguistes. Euskera. 60(2):477-498. para defender que esse papel pode (e deve) caber aos linguistas – conforme tem sido demonstrado, com resultados muito positivos, em diversos contextos, com destaque para a colaboração técnico-científica de equipas de linguistas em diversos países na definição das normas linguísticas e ortográficas a transmitir no ensino de línguas que não tinham, até muito recentemente, lugar na escolaridade oficial, como é o caso das chamadas “línguas autonómicas” da Espanha após a ditadura franquista, das línguas africanas nas sociedades pós-coloniais ou, atualmente, das línguas ameríndias em diversos países da América do Sul – é o que recordamos de seguida. Trata-se de um argumento que interpretamos como integrado no perímetro dos objetivos e limitações científicos da linguística e que respeita todos os requisitos ético-deontológicos e metodológicos da disciplina, salvaguardando os pontos (i)-(v) supra: de entre os vários profissionais que se ocupam da língua enquanto objeto e instrumento de trabalho, os linguistas são, de facto, os melhores conhecedores de todas as variedades – históricas e modernas – de uma língua, o que é imprescindível ao estabelecimento de uma norma escolar coerente e cientificamente plausível. A colaboração dos linguistas, numa perspetiva de grande neutralidade, na definição e estabelecimento de uma norma escolar pode até ser vista como uma forma de colaboração da disciplina num desafio societal importante e na construção de comunidades mais pacificadas, ajudando na resolução de conflitos étnico-linguísticos que, deixados à mercê das autoridades políticas somente, correm o risco de aprofundarem trincheiras e divisionismos por vezes com consequências dramáticas para determinadas comunidades humanas.

os linguistas são, de facto, os melhores conhecedores de todas as variedades – históricas e modernas – de uma língua, o que é imprescindível ao estabelecimento de uma norma escolar coerente e cientificamente plausível

Assim, não nos parece completamente justificado – pelo contrio!que o linguista se distancie radicalmente de uma certa abordagem normativa, nos termos acima esboçados e desde que se distancie inequivocamente do papel (que era o da chamada “gramática normativa tradicional”) de legitimador social da norma padrão como a única “correta”, a única “legítima” ou a única de uso obrigatório em todos os contextos.

É neste âmbito que se torna particularmente interessante e significativo saudar a publicação de Pedagogia da variação linguística. Língua, diversidade e ensino, um volume coletivo organizado por Ana Maria Stahl Zilles, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e Carlos Alberto Faraco, da Universidade Federal do Paraná. Os organizadores e os autores do volume são linguistas e professores que trabalham num ambiente muito particular: o Brasil, onde o português está sujeito a uma grande variação regional e social – o que torna particularmente aguda a necessidade de se definir e atualizar cuidadosamente um standard nacional de mais ampla aceitação (por exemplo, no meio escolar e académico), sobretudo se tivermos em atenção as recentes transformações sociais de um país tão extenso e com características sociais, culturais e demográficas tão específicas, que assistiu, num passado recente, a medidas de escolarização em massa que tornaram as questões deste tipo ainda mais prementes.

Todos os estudos incluídos no livro demonstram que só do diálogo frutuoso entre investigação e ação podem nascer práticas educativas cientificamente validadas e pedagogicamente produtivas. Independentemente dos tópicos concretos trabalhados por cada um dos capítulos, eles podem ser vistos como excelentes exemplos do diálogo incessante entre linguística e ensino de línguas que poderão e deverão inspirar pesquisas e experiências pedagógicas noutros espaços de língua portuguesa, cabendo nesta dimensão da obra em apreço um dos seus grandes méritos e uma das principais razões pelas quais este livro é, em nosso entender, de leitura obrigatória para todos os profissionais com interesse neste tipo de aplicações e implicações entre linguística e ensino do português.

só do diálogo frutuoso entre investigação e ação podem nascer práticas educativas cientificamente validadas e pedagogicamente produtivas

O primeiro capítulo da obra, assinado por um dos seus organizadores, o Professor Carlos Faraco (pp. 19-30), merece especial destaque. Justamente dedicado à construção, ao longo da história, da noção de “norma escolarno ensino do português no Brasil, o texto fornece ao leitor uma quantidade muito rica e fundamentada de informações e permite-nos contextualizar de forma muito clara – e, simultaneamente, muito sólida – a grande questão de onde derivam muitas das questões mais parcelares que são discutidas noutros capítulos do livro. Sendo o Brasil, historicamente, um país relativamente recente enquanto estado soberano e independente e que, durante o domínio colonial – e por largas décadas após a independência –, adotou explicitamente a norma “culta” de Lisboa como a norma escolar de referência (como o atestam as gramáticas escolares publicadas no Brasil até inícios do século XX ainda, assim como muitos debates acerca do uso jornalístico e legístico da língua – v. pp. 21 ss.), a construção de uma norma escolar da língua ela também independente da antiga potência colonial seguiu um percurso longo e pedregoso, que Faraco resume de forma segura e informada no seu capítulo. Estamos perante um texto de leitura obrigatória para todos os profissionais do português, não só no Brasil como também em Portugal e, de forma muito especial, nos países de língua portuguesa que se tornaram estados independentes nas últimas décadas e onde o mesmo debate está ainda hoje vivo e dividido entre, por um lado, a necessidade de fixação e definição de padrões nacionais aceites e veiculados pela escola e, por outro, uma ligação à norma escolar do português europeu que, para os falantes desses países, é uma norma para todos os efeitos não nativa. Esta situação, que encontra um paralelo histórico na formação da norma escolar do português ensinado no Brasil, carece atualmente de investigação intensiva que, entre outros frutos, permita a produção de materiais didáticos de qualidade, pelo que o conhecimento, pelos profissionais envolvidos nesta temática (a que Carlos Faraco, através também do seu papel de representante do Brasil no Instituto Internacional da Língua Portuguesa, tem dado um contributo inestimável), deste tipo de trabalhos se revela do maior interesse e, também, da maior urgência.

a construção de uma norma escolar da língua ela também independente da antiga potência colonial seguiu um percurso longo e pedregoso

Todos os capítulos do livro oferecem uma leitura tão agradável quanto instrutiva. Um dos méritos de muitos dos trabalhos incluídos nesta coletânea advém da estreita ligação entre investigação linguística e prática pedagógica e ajudam-nos a encontrar respostas mais ou menos seguras a uma interrogação fundamental da qual derivam muitas outras questões teóricas, éticas e metodológicas igualmente exploradas ao longo do volume e noutros estudos citados nos diversos capítulos: como é que os professores em sala de aula – os quais apresentam também uma grande heterogeneidade nas normas do português que falam – podem lidar com o preconceito social e com o conflito entre a(s) sua(s) norma(s) (em princípio, aquelas que vêm consagradas nos materiais didáticos) e os usos concretos apresentados pelos alunos, socialmente desvalorizados como a “língua ilegítima”?

Em questões em que o português do Brasil se tem individualizado como uma variedade do português com marcas caracterizadoras bem identificadas e/ou em que a variação social se manifesta de forma particularmente visível, o estabelecimento de práticas pedagógicas o baseadas no preconceito mas sim na investigação e vocacionadas não para uma imposição cega e taxativa de uma gramática cristalizada e completamente estranha aos alunos mas sim para um trabalho de sensibilização/consciencialização dos aprendentes para a diversidade e para as múltiplas possibilidades de uso da língua encontra exemplos muito ilustrativos neste livro.

Estamos perante um texto de leitura obrigatória para todos os profissionais do português, não só no Brasil como também em Portugal e, de forma muito especial, nos países de língua portuguesa que se tornaram estados independentes nas últimas décadas

Tendo em conta a amplitude de temas e abordagens contemplados por todo o volume, o rigor de todos os capítulos – quer os de cariz mais linguístico/descritivo, quer os de pendor mais didático/aplicado – e a extrema pertinência do tema central que percorre todos os estudos reunidos neste volume, numa época histórica em que o ensino do português com diferentes estatutos se afirma e expande no mundo inteiro, seja em países em que é língua oficial, seja em países em que é estudado preferencialmente como língua estrangeira, e tendo ainda presente a necessidade de os profissionais ligados a esta área disporem de materiais científicos de grande qualidade que os ajudem no seu trabalho, a publicação desta obra vem oferecer-nos um instrumento precioso. Todos os capítulos nos dão informação e inspiração para estudos futuros, o que torna este livro, na apreciação que dele aqui fazemos, uma das publicações mais importantes de sempre no domínio da integração da variação linguística no ensino do português. A organização e a sequência dos capítulos dentro do volume facilitam a sua utilização como um livro imprescindível para todos quantos ponderem aprofundar os seus conhecimentos ou desenvolver trabalho de pesquisa e/ou ensino nesta área, pelo que é de felicitar os autores e editores por este contributo decisivo para a linguística e para a linguística educacional do português.