o_sistema_de_pronomes_pessoais1

COME EU, RENAN!

Como se tornou notório, um jornalista de gabarito entrevistou sósia de Filipão e publicou a matéria. Depois que tudo ficou esclarecido, ele pediu desculpas etc. O episódio não me interessa como barriga, mas apenas em razão de uma das afirmações do jornalista: 

– Realmente foi um erro tolo. Agi de boa fé. Percebi o erro e corrigimos, deu para corrigir. Não prejudiquei ninguém, a não ser eu mesmo.

O leitor terá percebido, especialmente se estiver no grupo que avalia qualquer “violação” de regras gramaticais como sintoma de degradação da língua, que o jornalistas não disse “a não ser a mim mesmo”, mas “a não ser eu mesmo”. Ou seja, empregou “eu” como objeto direto de “prejudicar”. 

Pelas ditas regras gramaticais, “eu” só se emprega em posição de sujeito. Em qualquer outra função, será “me” ou “mim” (a mim, para mim, de mim, em mim etc.).

Pelo menos dois fenômenos ocorrem com os chamados pronomes pessoais. Um é que eles preservam “casos”, ou seja, formas diferentes conforme a função (eu – me – mim (migo); te – ti (-tigo); ele – o – lhe etc.). 

“A maioria dos rígidos defensores da uniformidade gramatical não considerou estranha a variante – isto é, não a ouviu, ou não ouviu ela, porque não foi proferida por um popular!”

O outro fenômeno é que a flexão de caso está em variação com sua queda. Ou seja, há construções em que tal flexão poderia ocorrer, mas não ocorre. A declaração do jornalista é um exemplo. Curioso é que passe despercebido: pode-se apostar que a maioria dos rígidos defensores da uniformidade gramatical não considerou estranha a variante – isto é, não a ouviu, ou não ouviu ela, porque não foi proferida por um popular! 

Dou notícia de um estudo já antigo que trata de um aspecto desta questão. “Ele como acusativo no português do Brasil” é um breve ensaio de Mattoso Camara Jr. publicado em Dispersos, coletânea organizada por Falcão Uchoa (revista e ampliada, foi republicada pela Editorial Lucerna em 2004).

O texto é belíssimo, apesar de não dizer toda a verdade. Suas teses principais são: 

(1) a ocorrência de ele em posição de objeto direto é uma das principais características do português do Brasil; 

(2) o ensino escolar a condena, e, na literatura, a forma aparece para caracterizar falantes de baixa extração social; 

(3) é corrente, no entanto, na língua falada, em todos os níveis sociais, e só é evitada em situações nas quais quem fala “sente a responsabilidade de homem instruído”; 

(4) explicações históricas não dão conta do fenômeno, especialmente duas delas: 

    (a) que seja o análogo ou o descendente dos objetos diretos arcaicos (vi ela, nom temo ty), já que só a forma de terceira pessoa sobreviveu; 

     (b) não é “simplificação” de construções como vi-o a ele, de que se subtraiu depois o pronome regime “o”; 

     (c) não é analogia com construções de acusativo com infinito (mandei ele fazer).

“Em suma: o, a, os, as estão em franco desaparecimento”

A análise de Mattoso afasta completamente os critérios históricos. Sua explicação é absoluta e magistralmente sincrônica. Fundamenta-se em vários fatos: 

(1) ele comporta-se exatamente como um nome ou um pronome demonstrativo (Pedro / ele / aquele saiu; disse a Pedro / a ele / àquele; vi Pedro / ele / aquele); 

(2) o português do Brasil é basicamente proclítico, fato do qual decorre (3): 

(3) o, a, os, as, sendo átonos, não têm a característica necessária para ocupar a posição proclítica (o vi, a quero, ao contrário de me, te: me vê, te quero); 

(4) o quase desaparecimento de tu (substituído por você), do que decorre que, embora te conviva com você (abusivamente, diz Mattoso – o que deveria ser estranho!), a “tendência” é que a forma lhe ocupe a posição de objeto direto quando o falante pretende ser “correto” (Manduca está lhe chamando é de Artur Azevedo). 

Em suma: o, a, os, as estão em franco desaparecimento; o falante cuja atitude favoreça o padrão empregará lhe(s) no lugar dessas formas; mas o fato decisivo é que ele/ela e seus plurais tornaram-se praticamente formas invariáveis, isto é, sem flexão de caso. 

Segundo Mattoso, tal comportamento do pronome “ele” decorreria de seu estatuto semiótico especial, diferente do dos pronomes pessoais, o que lembra as análises de Benveniste: ele substitui nomes e tem flexões, o que não ocorre com eu e com tu. Ou seja: ele não é um pronome pessoal. 

“As teses de Mattoso seriam perfeitas se não fossem, hoje, pelo menos, desmentidas pelos fatos.”

As teses de Mattoso seriam perfeitas se não fossem, hoje, pelo menos, desmentidas pelos fatos. E o fato é que “ele/a” não é o único “pronome” a ir perdendo as flexões casuais, embora o grau desta mudança seja certamente mais profundo do que a que ocorre com os outros pronomes (nesses casos, talvez se trate apenas de variação). Ou seja, o erro de Mattoso consiste em dizer (não sei de que dados ele dispunha) que nada de semelhante ocorre com outros pronomes, dos quais sempre “usamos as flexões casuais (me, a mim)”.

Em contraponto, há fatos que são sintomas de que o sistema dos pronomes está balançando:

(a) a toada “Leva Eu, Sodade”, dos Cantores de Ébano, da qual um analista amador de música popular (Nassif) disse que tem uma “letra ingênua, tosca, de uma simplicidade comovedora”, que inclui “eu” como objeto direto: Ô leva eu / minha sodade / eu também quero ir / minha sodade / quando chego na ladeira tenho medo de cair! Leva eu, ô leva eu... / minha sodade.

(b) Sérgio Reis gravou música cujo refrão é Oh, leva eu, Mainha / Aqui não posso ficar / Oh, leva eu Mainha  / Que a saudade faz chorar (observe-se que a gramática não é totalmente caipira: a forma é “saudade”, não “sodade”);

(c) J. Luna e Antonio Barros compuseram “Procurando tu”, cujo refrão é “Passei a noite procurando tu / procurando tu / procurando tu”, em que ocorre a forma pronominal tu na função de objeto direto (a música não é sobre saudade e o verbo não é levar...);

(d) É de Zeca Pagodinho um sucesso musical recente cujo refrão é Deixa a vida me levar / Vida leva eu / Deixa a vida me levar / Vida leva eu

(e) Beija eu, de Arnaldo Antunes e Marisa Monte, inclui Molha eu / Seca eu; beija eu / beija eu / beija eu, me beija; então deita e aceita eu...

“O sistema dos pronomes está balançando.”

(Não estou contando as crianças, mas posso atestar que tenho ouvido semanalmente uma delas dizendo “A Sheila adora eu”; só não vou revelar a identidade da Sheila). Nunca ouvi essa criança dizer “gosto de tu” porque não emprega “tu”, mas “você”, categoricamente).

O que esses fatos mostram? Que, se não está em curso a mudança de todo o sistema dos pronomes pessoais, no que se refere a sua flexão casual, pode-se dizer com segurança que, ao lado das formas tradicionais, cada vez mais raras, está vivíssima uma gramática na qual todos os pronomes aparecem em todas as posições sintáticas com sua forma “básica” e invariável, aquela que estávamos acostumados (estávamos mesmo?) a considerar sua função de sujeito. 

Nos casos de eu e de tu como objeto, trata-se mais de contextos informais, como se pode confirmar com dados como os cartazes que vemos na TV ou na internet: Filma nóis, por exemplo.

“Ao lado das formas tradicionais, cada vez mais raras, está vivíssima uma gramática na qual todos os pronomes aparecem em todas as posições sintáticas.”

***

Quando o então presidente do Senado, Renan Calheiros, foi acusado de sustentar com ajuda de uma empresa uma jornalista com quem teve caso e uma filha, uma mulher apareceu em uma manifestação portando faixa na qual se lia COME EU, RENAN!