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O dialeto caipira, de Amadeu Amaral (a partir da leitura da obra e do imprescindível artigo de Vandersí Sant’Ana Castro, “Revisitando Amadeu Amaral”. In: Estudos Linguísticos XXXV, p. 1937-1944, 2006. [1937/1944])

O Dialeto Caipira, publicado há exatos 100 anos, é uma obra de referência na história da dialetologia brasileira e um marco na história da linguística no Brasil. Feito com método (pesquisa in loco, clareza, critério, objetividade e precisão), é a primeira obra que procura descrever de forma abrangente um falar regional brasileiro. Até então, os estudos de dialetos enfocavam quase que só o léxico do português do Brasil, em âmbito geral ou regional, constituindo-se em dicionários e vocabulários. Diferentemente, o estudo de Amaral revela uma preocupação mais ampla, procurando descrever o falar caipira em seus diferentes aspectos fonético, lexical, morfológico e sintático.

Nas palavras de Vandersí Sant’Anna:

Diz-nos o Autor que até mais ou menos a última década do século XIX, tivemos “um dialeto bem pronunciado, no território da antiga província de S. Paulo” o falar caipira , “bastante característico para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundível”. Esse falar “dominava em absoluto a grande maioria da população e estendia sua influência à própria minoria culta. (...) Ao tempo em que o célebre falar paulista reinava sem contraste sensível, o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações da nossa vida provinciana” (Amaral, 1982: 41). Todavia, no correr do final do século XIX e início do século XX, por atuação de fatores que alteraram o meio social (libertação dos escravos, crescimento da população, imigração, ampliação das vias de comunicação e do comércio, extraordinário incremento da educação), os “genuínos caipiras, os roceiros ignorantes e atrasados”, e o caipirismo vão perdendo seu espaço de influência. De tal forma que, à época em que o Autor desenvolve sua pesquisa, o falar caipira se acha “acantoado em pequenas localidades” que ficaram à margem do progresso, subsistindo “na boca de pessoas idosas”, observando-se, entretanto, que “certos remanescentes de seu predomínio de outrora ainda flutuam na linguagem corrente de todo o Estado, em luta com outras tendências, criadas pelas novas condições” (Amaral, 1982: 41-42). É esse falar que Amadeu Amaral descreve, numa tentativa de documentá-lo antes que se perca.

O material linguístico observado por Amadeu Amaral refere-se predominantemente aos municípios de Capivari, Piracicaba, Tietê, Itu, Sorocaba e São Carlos, mas é interessante aprender com o autor que o dialeto caipira era muito usado em toda a província (o estado de São Paulo), pela maioria da população e também por uma minoria culta. Isso deu aos paulistas a fama de corromperem o vernáculo com seus vícios de linguagem.

As características marcantes e influentes do dialeto da região parecem ser o que mantém a sua sobrevivência: é como se os falantes, conscientes de sua fala, a preservassem por uma questão de identidade e se tornassem, numa perspectiva da Análise de Discurso, narradores-produtores.

Por isso, a atualidade d’O Dialeto caipira. Uma obra pioneira, uma pesquisa importante feita há um século, que aborda uma questão linguística brasileira e que, pelo desenvolver dos estudos linguísticos, pode ser analisada hoje de uma maneira que ultrapassa a dialetologia e alcança a questão da identidade.

Alguns dados linguísticos sobre o dialeto caipira recolhidos por Amadeu Amaral:

a)    No nível fonético:

·        realização de [e] e [o] átonos finais: est[e], pov[o] (“povO”);

·        realização do ditongo nasal de bom, tom, som como [ãw] (“bÃU”);

·        ocorrência do “r caipira”, em posição intervocálica arara e pós-vocálica carta som identificado como “línguo-palatal e guturalizado”, cuja articulação é descrita em pormenores por Amaral; o “r retroflexo”, como também é conhecido, é, talvez, o traço mais marcante do que hoje se identifica como uma pronúncia “caipira”;

·        realização africada das palatais /ʃ/ e /ʒ/ [tʃ]ave para chave, [dʒ]ente para gente :tchave, dgente

·        alternância entre /b/ e /v/, dando lugar a formas sincréticas como [b]assora/[v]assora; [b]espa/[v]espa; [b]amo/[v]amo. varrer/barrer.

·        troca da lateral /l/ por /r/: craro; enxovar.

 

b)   No nível morfológico, uma das características é, na primeira pessoa do plural do perfeito do indicativo dos verbos em –ar, a tônica a>e: caminhamos=caminh[e]mo(s); outra  característica morfológica é que o adjetivo e o particípio passado frequentemente ocorrem sem flexão (de número e de gênero): essas coisarada bonito. Aí foi bão: peguemo a coisarada tudo.

 

c)   No nível da sintaxe, temos o uso de ele, ela como objeto; emprego de dupla negativa; uso de mór de vê e mó de vê (por amor de) para exprimir circunstância de causa. ninguém não viu ela? Pra mó de pedi(r) pra ela barrer.

 

d)   No nível do léxico, cabe destacar a presença de formas arcaicas, usadas pelos colonizadores portugueses já no século XVI: saluço (soluço), função (= baile), dona (= senhora), reina(r) (= fazer travessuras); presença de formas do tupi: caipira, sucuri, capim abacaxi, cipó, pamonha; e formações do próprio dialeto: campea(r) (= procurar), espeloteado (= maluco), prosea(r) (= conversar), rabo-de-tatu (= relho).

Interessante também apontar aqui que Amadeu Amaral não estava certo quando profetizou que o dialeto, estando já restrito a pessoas idosas e isoladas, iria desaparecer brevemente, por concorrência de outros falares paulistas. Em pesquisas realizadas 50 anos depois por linguistas da Unicamp (no final dos anos 1970), constatou-se que o dialeto estava ainda mais vigoroso, tanto no campo quanto na cidade.

Além disso, os pesquisadores se deram conta que o r retroflexo não está presente somente em palavras como porta (r pós-vocálico) e arara (r intervocálico) mas também, mais estranhamente, em encontros consonantais como braço ao menos em Capivari, terra natal de Amadeu Amaral.