Untitled-design-32

A intuição linguística não é um recurso valioso somente para aqueles que lidam cientificamente com os fatos da língua, os linguistas, como também para os usuários em geral. Exemplo disso é o tratamento que damos, especialistas ou não, ao gênero gramatical dos substantivos da língua que crescemos falando ou mesmo de uma língua estrangeira. Em línguas românicas como o português, o espanhol e o galego, impera a tendência geral de que palavras terminadas em -o são masculinas, o livro, el libro, o libro, e as terminadas em -a são femininas, a casa, la casa, a casa, respectivamente. Há, certamente, casos nas línguas que não seguem essa tendência, pois existem nomes com tais terminações que podem pertencer aos dois gêneros ou ser de gêneros opostos ao que se espera. Além disso, não vou entrar aqui no pormenor de -o ser vogal temática e -a ser desinência de gênero, porque não é o objetivo. Por outro lado, os substantivos terminados em outras vogais e em consoantes podem ser de um ou de outro gênero — a ponte, el puente, a ponte / o sol, el sol, o sol — ou, ainda, de ambos.

 

Voltando à questão da intuição, na região de onde sou, no norte do estado do Espírito Santo, e acredito que em muitas outras partes do Brasil também, é muito comum ouvir “o alface de hoje tá murcho”, ou “o couve ficou muito bom”, quando nos dicionários, nas gramáticas e na escola aprendemos que essas palavras terminadas em -e são femininas. Depois dessa informação, muitos de nós adotamos o gênero dado como oficial, ou passamos a variar entre uma forma e outra, ou, ainda, podemos manter o uso anterior ao da escolarização. Um caso interessante é o da palavra caçula (o/a filho/a mais novo/a), que, apesar de também dicionarizada como caçulo, conforme o Houaiss e o Aurélio (pressão do uso?), tem sido considerada a forma padronizada e pode ser empregada para os dois gêneros, sem a alteração da vogal final, com a mudança do artigo que a antecede: o caçula /a caçula, o filho caçula / a filha caçula. Sou o filho mais novo dos sete que meus pais tiveram, e minha mãe, com apenas quatro anos de escolarização, mas dotada de intuição e sentimentos linguísticos como qualquer um de nós, sempre diz que sou “o caçulo”, porque na cabeça dela o homem é o caçulo, e a mulher é a caçula.

 

Fiz essa breve introdução porque, dado o contexto de pandemia que estamos vivendo, tem me deixado curioso o gênero gramatical atribuído a Covid-19, principalmente nos usos feitos por órgãos oficiais e imprensa, falada e escrita. Covid-19 é uma sigla em inglês para a doença causada pelo vírus Sars-CoV-2 (também uma sigla vinda do inglês), que desdobrada significa Coronavirus disease 2019, isto é, uma doença causada pelo coronavírus descoberto no ano de 2019. No momento, estou na Espanha, mais precisamente na Galiza, em Santiago de Compostela. Naturalmente, tenho ouvido e lido as notícias sobre o novo vírus e suas “peripécias” em galego e em espanhol, as duas línguas oficiais da Comunidade galega. Por isso, se tornaram comuns aos meus ouvidos e olhos as formas o Covid-19 (galego) e el Covid-19 (espanhol), ambas tratadas como masculinas, portanto.

 

Por outro lado, comecei a perceber nos usos vindos do Brasil, principalmente da imprensa, a forma sendo posta no feminino: a Covid-19. Antes mesmo de investigar o significado de Covid-19, minha intuição, com um quê de conhecimento especializado, me direcionou para um possível uso metonímico no Brasil, pois até então eu estava entendendo Covid-19 como o nome do vírus, não da doença que ele causa (percebo que muita gente ainda entende dessa forma). Feitas as devidas verificações, a adoção do feminino pela mídia brasileira, como o Grupo Globo e a Folha de S.Paulo, entre outros, se justificava pelo entendimento do “d” de Covid, ou seja, disease em inglês, doença (palavra feminina) em português.

 

Fato é que aqui na Espanha, a Real Academia de la Lengua (RAE), por tradição e poder, costuma se manifestar quando surgem novidades na língua como a que estou comentando. Por meio do Twitter, um internauta dirigiu a seguinte pergunta à RAE: “Es ‘la Covid-19’ o el “Covid-19?”. Num primeiro momento, a manifestação da instituição foi a de indicar que o emprego no feminino seria o correto, tendo em vista o mesmo entendimento que provavelmente ocorreu no Brasil: se disease é enfermedad (palavra feminina), então “la Covid-19”. Entretanto, pelos canais de comunicação da RAE, chegaram muitos comentários em discordância desse posicionamento. Em função disso, outra resposta veio (e que pode ser encontrada ao lado de outros dados no seguinte endereço eletrônico: https://www.rae.es/noticias/crisis-del-covid-19-sobre-la-escritura-de-coronavirus): “O acrônimo Covid-19 que dá nome à doença causada pelo vírus Sars-CoV-2 é usado normalmente no masculino (el Covid-19) por influência do gênero de coronavírus e de outras doenças virais (o ebola), que pegam por metonímia o nome do vírus que as causa. Mesmo que o uso no feminino (la Covid-19) se justifique por ser doença (disease, em inglês) o núcleo do acrônimo (COronaVIrus Disease), o uso majoritário no masculino, pelas razões expostas, é considerado totalmente válido” (tradução e adaptação minhas). No final das contas, está legitimado o uso masculino por quem costuma legislar sobre a língua espanhola, embora já se pudesse ouvir e ler por aqui em espanhol o emprego feminino assim que a RAE promoveu a primeira manifestação.

 

Interessante observar que nem a Real Academia Galega (RAG) nem a Academia Brasileira de Letras (ABL) se manifestaram a esse respeito — o que não é bom nem ruim, penso, mas apenas uma constatação. Acredito, inclusive, que no caso da ABL não há nenhuma expectativa sobre isso, tendo em vista seu histórico de pouca ou nenhuma ingerência na normatização linguística do português brasileiro. Notável, no entanto, é que numa visita à página da ABL (http://www.academia.org.br/noticias/), podemos encontrar o emprego no masculino:  “ABL lança ações culturais de enfrentamento ao isolamento social provocado pelo COVID-19”.

 

Retorno, pois, à intuição linguística. Algo além do metonímico parece estar em jogo nesses usos. Parece haver uma tendência geral nas três línguas para o masculino que pode estar atrelada à forma em si: a finalização em consoante (d) e, em seguida, a presença de um numeral (19). A pronúncia do português brasileiro, de forma geral, acrescenta a vogal [i] após o “d”. Mesmo assim, sua presença não pode ser considerada decisiva, já que não faz parte do grupo da tendência geral de -o para masculino e -a para feminino. Seria então a força do numeral que indica tal tendência? A isso só um aprofundamento na questão poderia responder.

 

Mas é interessante como os apresentadores de telejornal e os repórteres em chamadas ao vivo na televisão brasileira tendem a usar o masculino quando estão em situação de fala menos monitorada. Se leem o teleprompter, temos o feminino convencionado (a Covid-19); se se manifestam com algo de espontaneidade, tende a emergir o masculino (o Covid-19) ou a variação entre os gêneros. Nos telejornais espanhóis e galegos, tanto na leitura como na fala (mais) espontânea predomina o masculino (tendência natural), com um ou outro raro uso no feminino (força normatizadora).

 

Por ora, é essa a reflexão.