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Durante muito tempo nos estudos linguísticos se fez a oposição entre gramáticas normativo-prescritivas e gramáticas descritivas. Uma gramática normativo-prescritiva era aquela que delimitava um conjunto de regras (que constituíam uma norma) para impor essas regras (isto é, prescrevê-las) como as que deveriam ser ativadas pelos falantes da língua quando desejassem se exprimir de forma “correta” ou “elegante” (uma correção e uma elegância que, evidentemente, decorriam dos conceitos e preconceitos sociais do gramático). Essa norma-prescrição se dirigia (desde a Antiguidade) à produção de textos escritos, especialmente literários, ou de manifestações faladas que se “comportavam” como textos escritos (e que eram, quase sempre, oralizações de algum texto escrito previamente). A primeira gramática conhecida no Ocidente, a de Dionísio Trácio (170 aec-90 aec), se abre precisamente com estas palavras: “Gramática é o conhecimento prático do que é comumente expresso na obra dos poetas e prosadores” – ou seja, o vínculo com a produção de textos escritos com finalidades estéticas é assumido sem rodeios. Não por acaso, durante muito tempo se usou o termo língua literária para rotular a norma-prescrição dos compêndios gramaticais. Uma deformação social importante foi o entendimento de que essa língua literária devia servir de padrão de comportamento linguístico para toda e qualquer manifestação da língua, e assim é até hoje, com muitas pessoas criticando usos feitos por outras em situações informais, quase sempre faladas, e cobrando o emprego exclusivo das normas que foram prescritas pela tradição gramatical para a produção de textos escritos formais

Por seu lado, uma gramática descritiva seria obra de linguistas profissionais, que se empenhariam em observar os usos efetivos de uma língua em diferentes situações, descrevê-los e registrá-los, guiados pela pretensão de fazer um trabalho semelhante ao de cientistas como os geólogos, que examinam o universo mineral, descrevem o que encontram ali e documentam seus achados, sem jamais se perguntar se tal rocha que aparece em tal lugar está “certa” ou “errada” por estar ali. Essa pretensão poderia ser rotulada de ingênua porque uma língua é uma entidade de difícil delimitação (o que torna impossível, por exemplo, dizer quantas “línguas” existem no mundo), decorrente da evolução do cérebro humano ao longo dos milênios e enraizada profundamente na vida sociocultural de qualquer indivíduo e de qualquer grupo de indivíduos — ou seja, uma língua não é uma rocha que possa ser descrita com absoluta e total imparcialidade. O linguista é falante de uma ou mais línguas, pertence a uma comunidade de fala e, como tal, está impregnado das crenças, superstições, preconceitos e ideologias que configuram o meio social em que vive. As gramáticas descritivas são instrumentos preciosíssimos para o conhecimento de uma língua (ou de variedades específicas de uma língua) e se espera que sejam produzidas com metodologia rigorosa e com boa fundamentação teórica. Mas o próprio fato de optar por uma teoria ou outra já direciona aquilo que o linguista vai ou não descrever e o modo como vai (ou não) descrever. 

Com o passar do tempo, especialmente a partir da segunda metade do século 20, a dicotomia normativo-prescritiva e descritiva foi reavaliada, sobretudo com o desenvolvimento de disciplinas como a sociolinguística, a sociologia da linguagem, a análise do discurso, entre outras. O pesado estigma acadêmico que recaiu durante muito tempo sobre a gramática normativo-prescritiva começou a ser questionado. Uma das consequências desse movimento foi a separação do termo binário normativo-prescritiva em dois termos distintos: normativa vs. prescritivanormativa ou prescritiva. Embora muitas pessoas possam reivindicar uma liberdade geral e irrestrita para os usos da língua (tô eu aqui de mãozinha levantada), uma visão mais realista dos fatos sociais deixa claro que existe uma demanda social por normas linguísticas: a maioria das pessoas quer (ou querem) saber como se deve(m) comportar socialmente em termos de uso da língua (e o verbo comportar não é gratuito aqui porque a sociologia da linguagem define exatamente os usos da língua como um comportamento). Por exemplo: a maioria das pessoas quer ou queremdeve ou devem? É a esse tipo de pergunta que uma nova concepção de gramática normativa vem se dedicando e tentando oferecer respostas, e uma delas é precisamente sim, uma gramática normativa é algo positivo e necessário. No entanto, como escreveu o linguista francês Alain Rey já nos anos 1970: “Não se trata de rejeitar toda norma — nenhuma sociedade pode abrir mão delas —, mas sim de fiscalizar sua construção com a análise científica, e compreender a atividade normativa, isto é, modificá-la, como um setor da prática social menos inocente do que parece”. Traduzindo: precisamos de uma norma de comportamento linguístico desde que a base de sua elaboração seja o trabalho dos linguistas profissionais. E é aí que o normativo se conjuga com o descritivo: a partir do que se conhece sobre a língua — daquilo que tem sido descrito — é possível construir uma norma realista para responder às demandas sociais que visam o já citado comportamento linguístico.

Nesse sentido, normatizar seria reconhecer e até mesmo legitimar o que já é normal na língua, o que já circula na sociedade, inclusive nas manifestações escritas formais. Gosto sempre de usar como termo de comparação as práticas sociais relativas ao casamento. Durante longuíssimo tempo, o casamento era considerado indissolúvel (… até que a morte os separe…), mas muitos casais se separavam, mantinham as aparências do casamento, mas cada um levava vida independente (muitas vezes até vivendo sob o mesmo teto). Esse comportamento acabou por ser normatizado, isto é, reconhecido por lei, legalizado. O mesmo vale para as relações entre pessoas do mesmo sexo, que vão conquistando aos poucos uma normatização mais do que justa e necessária. 

Assim, por exemplo, uma gramática normativa, não prescritiva, do português brasileiro poderia (ou deveria?) registrar e definir como aceitável em todas as manifestações de uso da língua — incluindo a escrita mais formal — a concordância verbal que aparece nos exemplos abaixo (uma gota d’água no oceano de dados que venho coletando há muitos anos): 

(1) “Nesse contexto, podemos afirmar que resta ao professor de língua portuguesa apenas três caminhos a serem seguidos [...]”.

(2) “Na contramão disso, não deixa de causar surpresa a recepção que teve as ideias de Jakobson, e muito especialmente sua interpretação de Saussure [...]”.

(3) “A professora E. observou que compete ao Departamento projetos dessa natureza [...]”.

Qualquer pesquisa rápida nas redes sociais oferece milhares de exemplos como esses. O que está em jogo aqui é a não concordância do verbo com o sujeito quando o sujeito está posposto ao verbo. É fácil deduzir que os três exemplos acima são retirados de textos formais, produzidos (e a escolha foi proposital) por linguistas profissionais — ou seja, não se trata de pessoas com baixo nível de escolarização, que falam “errado” ou têm domínio escasso das convenções da escrita formal. Esses textos foram publicados em livros ou revistas científicas, isto é, passaram pela revisão dos editores. Se falantes considerados cultos já praticam essa não concordância em textos escritos formais é porque ela está muito bem implantada em todo o espectro social, desde a pessoa plenamente analfabeta até a mais bem formada, e ocorre em todos os gêneros textuais. Por que então não normatizar o que já é normal?

O português brasileiro é uma língua em que a ordem SVC, sujeito-verbo-complemento, é a mais frequente. No entanto, quando se trata de verbos intransitivos, a ordem VS, verbo-sujeito, é muito habitual, e a antecipação do verbo leva os falantes a interpretar, intuitivamente, o que vem depois do verbo como complemento, e não como sujeito. Em termos de uma gramática de casos, o sintagma nominal que vem depois do verbo (como as ideias de Jakobson, no exemplo [2]) deixa de ser analisado como nominativo para ser analisado como absolutivo (em tempo: nesse exemplo o verbo é transitivo direto, ter, prova de que não é só com os intransitivos que ocorre o fenômeno da não concordância). Como tenho dito (e como diz o título de um dos meus livros), nada na língua é por acaso — todo e qualquer fenômeno linguístico pode ser explicado com base em argumentos coerentes e bem firmados em alguma teoria. Nossa cognição social é tão poderosa que leva a grande maioria das pessoas a cometer os mesmos (supostos) “erros”! Daí que a ideia de “erro comum” é, ela mesma, um erro: o que existe é um acordo comum (inconsciente) entre os falantes em torno do processamento da língua que falam.

Idealmente, uma gramática normativa firmada, como escreveu Alain Rey, na análise científica explicitaria a quem fosse consultá-la que, no português brasileiro culto contemporâneo, uma nova regra gramatical — a não concordância na ordem VS — está em concorrência com uma regra tradicional, e que uma concepção de língua (e de ensino de língua) livre de preconceitos e fundamentada na democratização das relações linguísticas na sociedade admite com toda a tranquilidade o uso optativo das regras de concordância e de não concordância (e até o uso simultâneo das duas, o que é muito comum quando uma mudança linguística está em processo de implementação). Querer reprimir essa não concordância é trabalho inútil, porque ela está enraizada na gramática intuitiva de todos os brasileiros. Por outro lado, querer impor, prescritivamente, a regra nova também é descabido, porque as pessoas têm de gozar do legítimo direito de falar e escrever como bem lhes parece. Normatizar a dupla possibilidade de concordância é explicitar para o falante não especialista que essa possibilidade é normal. A palavra mágica aqui é também

Infelizmente, para democratizar as relações linguísticas na sociedade é preciso, antes de tudo, democratizar a sociedade. E democratizar uma sociedade erguida há meio milênio sobre o chão da violência parece um projeto cada vez mais distante.