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Carlos Eduardo Deoclecio

 

Quando passei pela escola nos anos 1990, as preposições eram apresentadas numa listinha que memorizávamos com base num dispositivo matemático: as 18 preposições essenciais (a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, per, perante, por, sem, sob, sobre, trás), aquelas que em tese só funcionam como preposição na língua — Bechara (2015) não inclui após e per entre as essenciais. Cunha e Cintra (2017) mantêm após entre elas e colocam per ao lado de por, o que Bechara também faz. Os professores não nos diziam por que algumas eram chamadas essenciais e outras acidentais — aquelas que eventualmente funcionam como preposição, como exceto e mediante. Mas também nunca perguntávamos, porque existia um harmonioso contrato de reprodução do conhecimento institucionalizado nesse estado de coisas. Também fazia parte desse esquema não receber explicações nem perguntar como usar ante, per, perante e trás. Existe ideologia nisso?
 

Em gramáticas, a classe das preposições é apresentada como um conjunto de palavras (ou vocábulos) ou unidades linguísticas desprovidas de flexão de número e gênero, invariáveis na forma, portanto. Funcionam como unidades relacionais entre nomes e também entre orações, estabelecendo entre esses elementos relação de subordinação: em caixa de sapatos, a preposição de, ao relacionar os substantivos caixa e sapatos, de modo a especificar o primeiro, contribui para a hierarquização sintática em que o consequente sapatos se subordina ao antecedente caixa.
 

Às vezes nos confrontamos com o emprego de algumas preposições. Vejamos alguns casos:

(1) A e para: até pela variação consistente que existe entre elas, há quem observe diferenças semânticas em construções como fui ao Rio de Janeiro e fui para o Rio de Janeiro.

(2) Com e contra: uma professora que tive, ótima no que se propunha, enfatizava que um time de futebol joga contra o outro, nunca com, mas ouvimos o Flamengo joga com o Vasco, e creio que ninguém imagina que ambos não serão adversários.

(3) Dia desses, no WhatsApp, enviaram esta mensagem: “[...] pede-se a todos que se juntem durante 3 minutos para orar pela emergência do coronavírus”. O vigilante linguístico que existe em muitos de nós surgiu em mim e respondi: “Desculpa, mas aí está escrito que se deve orar para que a epidemia aumente”. Ideologia aqui? Apaguei o comentário minutos depois, quando ao ímpeto sobreveio o diabinho da culpa. A intenção discursiva claramente não era a da minha interpretação (orar para que a epidemia aumentasse). Continuei pensando: era só colocar contra no lugar de por. Casos como esses, passando pelos de regência de verbos como assistir, ir, chegar etc., nos colocam numa situação de escolha de uso de determinada preposição — ou mesmo de não usar —, dadas as relações entre as distintas normas, usos orais e escritos, adequação ao tipo e ao gênero do texto etc.

Dito isso, chego propriamente ao que indiquei no título do texto. Do que quero tratar? Não é, evidentemente, de explicar o que é ideologia. Para isso, leiam desde (e sobre) Destutt de Tracy, Karl Marx, Friedrich Engels, Louis Althusser, Slavoj Žižek, Terry Eagleton, Michel Pêcheux, Marilena Chaui, até os vários trabalhos da área de análise de/do discurso que linguistas vêm produzindo desde os anos 1960. Ideologia é um termo que nasce na filosofia, passa pela sociologia e, como indica a acepção 4 do Dicionário Houaiss (edição eletrônica), é o “conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos”. Em Althusser (1970: 91), lemos: “1 – Só existe prática através e sob uma ideologia; 2 – Só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos”. Com base nessa acepção e elaboração, e em sentido amplo, entendemos que nenhuma de nossas práticas está isenta de ideologia.

 

No Brasil de hoje, criticar o / discordar do / opor-se ao governo de Jair Bolsonaro, seja por quaisquer de suas ações, faz com que seus apoiadores mais fanáticos rotulem de comunistas, esquerdistas e petistas esses críticos, discordantes e opositores, como se esses termos fossem sinônimos perfeitos, sem espectro, sem nuance. O fato de esses rótulos ganharem sentido pejorativo tende a revelar a estratégia fascista de transformar ideologicamente um grupo em inimigo interno, que seria o responsável pela decadência da nação, do país. Esse colocar numa caixa única todas essas pessoas se faz de forma abrupta, rasteira e com a reinvenção e criação de novos significados e sentidos para esses termos. A Globo, a Folha de S.Paulo e até João Dória e Sérgio Moro passaram a integrar no imaginário bolsonarista o grupo dos comunistas-esquerdistas-petistas. Desde as eleições de 2018, Bolsonaro e seus comparsas têm insistido na implantação do Escola sem Partido e no combate ao que chamam de ideologia de gênero. Para eles, só é ideologizado aquilo que é contra a verdade que defendem. Eliminar o pensamento de esquerda das escolas não é considerado ideológico, mas é dar lugar à “verdade”. Meninos vestirem azul e meninas rosa é estabelecer um padrão verdadeiro e não ideológico. Ideologia ganha ao lado dos termos anteriores novo sentido: é o ideário que está no outro e não em mim, é o errado, o falso, o herético contido no outro grupo, não no meu.

Com a pandemia do novo coronavírus, a ideologia do “a economia não pode parar” (para o governo, isso não é um lema ideológico) vem associada a alguns componentes linguístico-discursivos, como “o número de mortes está sendo inflado”; “os leitos dos hospitais não estão todos ocupados”; “a Globo faz terrorismo todo dia no Jornal Nacional pra poder derrubar o governo” (deixa a gente assustada mesmo!); “morreu com Covid, não de Covid” etc. É a essa última construção (e em variantes dela) que vou me ater.

 

No dia 2 de abril de 2020, o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, divulgou no Twitter a seguinte nota: “É com pesar que informamos que o ES registrou o primeiro óbito por coronavírus, nesta manhã. O paciente estava internado no Hospital Jayme Santos Neves e tinha 57 anos [...]”. Respostas de vários naipes foram postadas, indo do apoio incondicional, passando por “e a dengue e a tuberculose?”, “e o desemprego?”, até “ele morreu COM coronavírus, não ‘de’ ou ‘por’ coronavírus”.

 

A princípio li como se essa última intervenção tivesse por objetivo fazer alguma correção de regência verbal — a caixa alta também influenciou essa leitura, porque imaginei que o gramático de plantão estivesse esbravejando a pretensa forma correta. Mas não. Tratava-se de dizer que o referido paciente tinha alguma doença prévia, como obesidade ou diabetes, que teria sido associada ao coronavírus e que isso teria causado a sua morte. Nessa linha de raciocínio, as construções morrer de e morrer por indicariam uma causa direta da morte, isto é, o paciente era são, contraiu o novo vírus e morreu; ao passo que a construção morrer com apontaria para a comorbidade. Gramaticalmente, não há o que reparar. “A preposição com exprime, fundamentalmente, a ideia de ‘associação’, ‘companhia’” (CUNHA; CINTRA, 2017, p. 572).

 

No entanto, está inscrito nesse discurso o posicionamento de que o paciente “morreria mesmo, porque já era doente”. Não me recordo onde li o seguinte raciocínio: João tem câncer. Ao atravessar a rua, foi atropelado e faleceu. Do que João morreu? Pode soar tosca a comparação, mas é útil para ajudar a minar o discurso provido de uma cortina ideológica tão virulenta quanto o Sars-CoV-2, porque a simples troca de um elemento gramatical é usada para justificar uma prática, invertendo a realidade em que vivemos. Outra ilustração, particular: tive uma irmã com lúpus, que conviveu com a doença por vinte anos. Em dado momento, o lúpus produziu um quadro de falência dos rins, levando-a à hemodiálise. Vida relativamente normal por uns seis anos, até que surgiu a oportunidade de passar por um transplante. Cirurgia feita, quadro de infecção, sepse (infecção generalizada), morte. Do que ela morreu efetivamente? DE sepse? COM sepse?
 

A política de que a ideologia está no outro, não em mim, nem no meu grupo se confirma em postagens de usuários do site O Antagonista:

(1) “Tens algum problema de cognição, leia a notícia direito: morreu pelo corona, não é com” — aparentemente alguém que tenta se desvencilhar da armadilha ideológica das danadas das preposições.

(2)Trata-se de uma mulher de 61 anos com ‘obesidade mórbida, hipertensão arterial, ex-tabagista’, morreu de COVID-19 ou COM COVID-19?” — um usuário alinhado ao pensamento de que essa morte aconteceria de qualquer modo.

(3) “A imprensa idiotizada pela esquerda não percebe essa diferença”. Diogo Mainardi é um dos fundadores de O Antagonista. Esquerda?
 

As construções destacadas (morrer de / morrer por / morrer com) são, portanto, ideologizadas porque carregam em si vestígios de uma linha de pensamento que as contaminou com o estabelecimento de uma irrealidade, e ideologizadoras por se constituírem num canal que permite a difusão desse pensamento, virulentamente.