Blog da Parábola Editorial

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'Você' e 'eu' não somos pronomes

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A história de qualquer área de conhecimento é a história de como seus termos e conceitos mudaram ao longo do tempo e continuam a mudar. Em livros das mais variadas ciências, encontramos com frequência afirmações do tipo: “Durante muito tempo se acreditou que X, mas essa tese já foi abandonada desde que Y comprovou que Z…”. Ou do tipo: “O termo P foi usado durante muito tempo para definir Q, mas atualmente o termo mais empregado é R”. Um exemplo conhecido é o dos termos que designam as partes do corpo humano. No final da década de 1990, vários desses termos da anatomia receberam uma reformulação: o sistema digestivo passou a ser aparelho digestivo; a trompa de Eustáquio passou a se chamar trompa auditiva; o ouvido — para surpresa de muita gente — agora é uma das partes da orelha; as conhecidas amígdalas (que arrancaram de mim quando criança) agora são tonsilas palatinas; a rótula se chama agora patela.

O que tem isso a ver com o título deste texto: “Eu e você não somos pronomes”? Tem muito a ver. Corre pelas redes digitais um meme (reproduzido aqui), em que um homem, na ilusão de ser amado, pergunta a uma mulher: “Você e eu somos o quê?”, ao que ela responde: “Pronomes”, para decepção do mancebo. Já vi esse mesmo meme em outras línguas, com a mesma ilustração e a mesma resposta. Tentei convencer algumas pessoas de que você (ou tu, dá no mesmo) e eu não são pronomes, mas em vão. A doutrina gramatical tradicional — com seus conceitos e termos — está de tal modo implantada no ADN da cultura linguística ocidental que é dificílimo fazer as pessoas aceitarem mudanças nela. (Eu aprendi que o ácido desoxirribonucleico se chama ADN, porque afinal a gente fala português, mas isso foi no milênio passado, quando o parasitismo linguístico do inglês não estava ainda no nível em que está hoje.)

Para entender por que designar eu e você (e seus plurais) como pronomes é inadequado, precisamos recorrer a dois termos de origem grega: dêixis e anáfora. A dêixis é a propriedade que os elementos linguísticos têm de apontar para a realidade empírica. Quando digo “Leva essa mesa pra ”, o advérbio tem propriedade dêitica: esse só pode ser compreendido dentro do contexto de interação da fala, num momento e lugar precisos. A anáfora, por sua vez, permite a retomada, por um elemento linguístico, de algo que foi dito antes, na fala ou na escrita: “Morei muitos anos no Recife, foi que aprendi a gostar de tapioca”. Agora, o advérbio não aponta para nada na realidade empírica, ele retoma a expressão no Recife, faz referência a algo dito antes. A dêixis aponta para algo que está no contexto, enquanto a anáfora retoma algo que foi enunciado anteriormente no texto.

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Não é mudança linguística. É tragédia social!

Não é mudança linguística. É tragédia social! Mudança linguística ou tragédia social?

De vez em quando, faço postagens em que critico determinados usos de palavras, expressões e construções gramaticais que me parecem ou descabidas ou pedantes ou decorrentes de um domínio insuficiente da escrita mais monitorada, quando não é tudo isso junto. Invariavelmente, aparece algum comentário do tipo “mas isso não é a língua que está mudando?”; “você, que luta contra o preconceito linguístico, não está sendo preconceituoso?”; “por que criticar a mudança linguística?” e por aí vai.

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Existe lógica na língua?

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Dia desses, publiquei uma postagem em que me queixava das pessoas que fazem legendas para filmes e seriados por tentarem evitar a tal “mistura de pronomes” — uma falácia total —– e escreverem coisas como “eu só queria ajudá-lo!” quando é um irmão falando para outro num momento de raiva. Escrevi que o mais natural e autêntico seria “eu só queria te ajudar!”. Eis senão quando uma pessoa argumentou nos comentários: “Pois parece a concordância mais lógica: tu-te, você-o...” Vamos deixar passar a “concordância” (porque não tem nada de “concordância” nesse caso, é correlação pronominal) para nos concentrarmos em lógica. Faz muitos séculos que se enraizou na cultura ocidental a ideia de que existe uma “lógica” na língua e que, por isso, é preciso submeter a língua a essa suposta lógica. A consequência dessa ideia é que, segundo ela, qualquer desvio com relação a essa lógica constitui um erro no uso da língua, língua que deveria ser como um relógio que nunca se atrasa (e na própria etimologia da palavra relógio — o grego horo·logion — está bem escondida a lógica, a “lógica das horas”).

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Se você dá aulas de português...

Se você dá aulas de português... “corrigir” sem humilhar

Se você dá aulas de português, diante de um dado que todos consideram “errado”, pode escolher entre diversas abordagens. Uma é humilhar o aluno dizendo que ele não sabe nem falar. Outra é manter uma lista de CERTO X ERRADO e acrescentar o erro (digamos, MENAS) ao lado do CERTO (MENOS). É uma atitude dogmática. Outra é “corrigir” sem humilhar, dizendo que muita gente fala assim, mas que, na escrita e em certas outras ocasiões, é melhor dizer / escrever MENOS (e dar as razões). Outra, ainda, é ter um espírito de pesquisa e observar (mandar os alunos observar) quem diz MENAS e em que contexto. Vão concluir que MENAS sempre ocorre diante de nome feminino, o que motiva a concordância. Ainda outra, na continuação, é (tentar) verificar se alguém tratou da questão. Uma saída é ver um dicionário, digamos, o HOUAISS (aqueles dicionários escolares (que eliminam tudo o que é heterogêneo) não servem pra isso... na verdade, servem pra pouca coisa). No HOUAISS, você encontra “a) como adv. quantitativo, é antônimo funcional de mais e, por isso, invariável; b) no Brasil, na linguagem coloquial desescolarizada, ocorre a forma deturpada menas (pron.indef.), em concordância de gênero com o substantivo que se segue (menas confiança comigo, hein?)". Relevem-se os termos um tanto preconceituosos...

Em relação ao que disse acima sobre ensino, vale acrescentar que muita coisa depende dos materiais que um professor consulta, os ditos instrumentos linguísticos. Pela ordem de relevância, citaria estudos de língua viva (com suas variantes). Em segundo lugar, projetos quase gramaticais, obras que tentam mostrar que o padrão, a norma etc. são menos rígidos do que se pensa. Obras como Não é errado falar assim (Bagno) e Gramática do português brasileiro escrito (Faraco e Vieira) são amostras. Mas as gramáticas tradicionais também são mais liberais do que se supõe (“aceitam” variantes de regência e de concordância, por exemplo). Mas quem as estuda? Os dicionários são ainda mais liberais do que as gramáticas, pois registram tudo (vejam as regências de “namorar” nos bons dicionários, por exemplo). Abaixo vêm os livros didáticos e/ou gramáticas que derivam deles — que resumem as verdadeiras. Finalmente, os mais conservadores são os manuais (de redação de jornais e de revistas e outros), que resumem as gramáticas e olham dicionários pela metade. Infelizmente, muitos concursos são elaborados por empresas, e as normas seguidas são mais as que constam em manuais e apostilas do que as que mesmo gramáticos e dicionaristas abonam. Em consequência, as alternativas dadas como corretas obedecem a um consenso generalizado, materializado em apostilas e manuais de redação (e de revisão). Não significa que haja conluio. Significa que a visão dominante é muito uniforme. O acordo é tácito.

 

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AS LÍNGUAS E OS NOMES DAS LÍNGUAS

banner_linguas_indigenas a própria ideia do que seja uma língua [...] é um construto cultural ocidental

Herdeiras que somos da assim chamada cultura ocidental (que é, no fundo, a cultura branca europeia de matriz judaico-cristã, forjada essencialmente por homens), temos sido habituadas a acreditar que existem entidades bem delimitadas designadas como línguas, coisas quase concretas, ou mesmo seres com vida própria (ideia cristalizada em frases como “a língua é um organismo vivo” ou em conceitos como “língua morta”). Por isso é tão difícil convencer a maioria das pessoas de que essa noção de língua nada tem de “natural”, porque é um produto intrinsecamente sociocultural e sociopolítico.

Na mesma visão de mundo de matriz europeia, o nome das línguas é sempre a substantivação de um adjetivo vinculado a um território, que pode ser o de um Estado soberano, independente (português, alemão, russo, estoniano, húngaro...) — o que confere à língua um status privilegiado, oficial —, ou ao de uma região dentro de um desses Estados (mirandês, galego, bretão, napolitano, lusácio...) — o que deixa as pessoas que as falam sempre em desvantagem sociopolítica, caso não dominem também a língua oficial. Só me ocorre um caso europeu em que não há esse vínculo território-língua: é o do romanche, falado (por bem pouca gente) na Suíça (numa região chamada Grisões), nome que deriva do latim romanice, isto é, “[falar] à moda de Roma”. Do outro lado da fronteira, no norte da Itália, fala-se o ladino (termo derivado de latino), aparentada ao romanche. Curiosamente, o romanche é a única língua propriamente “suíça”, já que as outras oficializadas no país têm nomes “estrangeiros”: francês, alemão e italiano.

No entanto, do ponto de vista histórico, esse vínculo entre língua e Estado — que, por causa daquele hábito cultural impregnado, nos parece evidente e com uma origem perdida nas brumas do tempo — é um construto sociopolítico relativamente recente, mal tem quinhentos anos. Se recuarmos até o século 5 da Era Comum, chegamos à época do desmantelamento do Império Romano do Ocidente, com a penetração de ondas migratórias de populações vindas de fora dos limites do império (as chamadas “invasões bárbaras”, como se as “conquistas” feitas pelos romanos para a constituição de seu império não tivessem sido também invasões!). A unidade imperial foi substituída por diversos reinos menores, cujas classes dirigentes provinham daquelas populações: godos, suevos, alamânicos, vândalos, francos etc. Com o passar do tempo, essas classes dirigentes adotaram a variedade de latim falada em suas terras, assim como adotaram o cristianismo. Onde o latim nunca tinha sido imposto, as populações dos reinos que se formaram mantiveram suas línguas próprias (caso da Alemanha, da Grã-Bretanha, da Hungria etc.), mas, por também terem adotado o cristianismo, o latim, língua oficial da igreja, se tornou ali a língua de cultura da elite, da justiça e do governo, tanto quanto nas antigas terras imperiais. E assim se passaram mil anos, um longo período que recebe o nome de Idade Média.

Na primeira fase da Idade Média, os reis atuavam como “administradores” de terras, os feudos, bem mais do que como governantes detentores de todo o poder — ao contrário, alguns senhores feudais eram mesmo mais ricos e poderosos que os reis. Naquele período, nem passava pela cabeça das pessoas a ideia de dar nomes a seus modos de falar. Somente o latim recebia o título de língua, e seu conhecimento estava restrito aos homens da igreja e a um punhado de letrados, numa época em que havia até reis analfabetos. As pessoas comuns, especialmente nas áreas onde o latim vinha passando por mudanças graduais, reconheciam uma origem compartilhada em seus modos de falar e praticavam espontaneamente o que chamamos de intercompreensão, ou seja, não viam (nem criavam) dificuldades em se fazer compreender e em compreender as outras, já que não existia o obstáculo simbólico das fronteiras estatais nem, muito menos, das línguas institucionalizadas. As variedades românicas constituíam um continuum dialetal, em que não se podia definir com precisão onde uma terminava e começava outra. Além disso, como a mobilidade da maioria era muito reduzida, as comunicações orais se faziam bem mais entre terras e aldeias próximas, cujas falas eram bastante semelhantes. Em contraposição ao latim, única língua digna do nome, essa pluralidade de falas recebeu mais adiante o nome genérico de romances (o que comprova a consciência que se tinha de serem continuações do latim) ou vulgares (isto é, “do povo”). Em Portugal, a língua da população era chamada linguagem ou nossa linguagem. A variação era considerada absolutamente normal, ao contrário de hoje, em que a variação é vista como “erro”, e a norma (artificialmente estabelecida), vista como a única forma “certa” de uso da língua.

O tempo foi passando e a situação política, econômica, social da Europa foi se transformando até começar a chamada Era Moderna. Foi sobretudo a partir do século 15, com a decadência do sistema feudal e o início do mercantilismo, que começou a se fortalecer o vínculo entre língua e território, território unificado e centralizado em torno da figura do rei (ou, em alguns poucos casos, da rainha), agora, sim, detentor do poder político. A tomada de Constantinopla pelos turcos (1453) e o consequente bloqueio das rotas que permitiam as trocas comerciais entre a Europa e o Oriente simbolizam o início da chamada era dos “descobrimentos” (mais um eufemismo para designar invasões, pilhagens, escravização e genocídios), quando Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda, a pretexto de encontrar o chamado “caminho para as Índias”, acabaram se apoderando de imensas extensões de terras mundo afora, iniciando o longuíssimo período colonial moderno — a primeira “conquista” de Portugal foi a cidade de Ceuta, no atual Marrocos, em 1415, enquanto a independência das colônias africanas e de Timor se deu em 1975, ou seja, 560 anos entre uma data e outra, com o “achamento” e a independência do Brasil de entremeio.

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Por que — e para quê — 'Uma história da linguística'?

Uma história da linguística, tomo 1 Uma história da linguística, tomo 2

O linguista romeno Eugeniu Coșeriu (1921-2002) escreveu, num artigo publicado em 1967:

A história da linguística teórica é uma história bem estranha: é muito frequentemente uma história sem continuidade, que só conhece seu passado recente e que ignora seu passado mais distante. Mesmo as teorias mais ou menos conhecidas e discutidas são, com frequência, desconhecidas em suas conexões históricas.

E cita explicitamente o caso de Ferdinand de Saussure (1857-1913), geralmente apresentado nos livros introdutórios à linguística e nos cursos universitários como um pensador em tudo original, que teria formulado uma série de conceitos até então inéditos. Um desses supostos ineditismos seria a definição do signo linguístico como uma entidade essencialmente arbitrária e também binária, por ser a combinação de um conceito (o significado) e de uma imagem acústica (o significante). Desse modo, por exemplo, o conceito {árvore}, que todo ser humano tem em seu arquivo mental, cria, na mente, uma imagem acústica que se exprime vocalmente como tree, para os falantes de inglês; Baum, para os de alemão; mbïra, para os de tupi; dérevo, para os de russo; zuhait, para os de basco etc. O conceito é o mesmo para todas as pessoas (uma ideia problemática, mas não vamos tratar disso aqui), mas ele se expressa de modo diferente em cada língua, o que comprova a arbitrariedade dos signos linguístico (ou seja, em última instância, das palavras).

Para começar a clarear as coisas, vamos ler a seguinte declaração:

Na língua, porém, os agentes fundamentais são seres inteligentes, o material não é apenas o som articulado — que poderia, em certo sentido, ser considerado um produto físico —, mas o som que se torna o significante do pensamento.

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Quatro perguntas e um pedido ao ChatGPT

banner-chatgpt IA, quem é você?

 

Usuário: O que é a inteligência artificial?

ChatGPT

Inteligência Artificial (IA) refere-se à capacidade de uma máquina ou sistema de computador imitar a inteligência humana para realizar tarefas que normalmente requerem inteligência humana. Isso envolve a criação de algoritmos e programas que permitem que as máquinas processem informações, aprendam com essas informações e tomem decisões com base nesse aprendizado.

A IA abrange uma ampla gama de técnicas e abordagens, incluindo aprendizado de máquina, redes neurais artificiais, processamento de linguagem natural, visão computacional, raciocínio automatizado e muito mais. Algumas das capacidades associadas à IA incluem reconhecimento de padrões, resolução de problemas, tomada de decisões, aprendizado autônomo e interação com humanos.

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Nossa língua e outras encrencas crônicas

Encrencas-Crnicas ... onde os gramáticos convencionais, com todas as suas limitações, reconheciam «falares», você identifica «línguas portuguesas»

 

 

Olá, Ana Elisa

 

Acabei há dias de ler o seu livro de crónicas Nossa Língua & outras Encrencas.

 

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Uma história da linguística, tomo 1

Bagno-BLOG

Uma história da linguística: tomo 1da Antiguidade ao Iluminismo é a primeira obra escrita em português que se propõe retraçar o longo caminho que os seres humanos têm percorrido desde os tempos mais remotos e em diferentes civilizações na busca por decifrar essa faculdade exclusiva da espécie que é a linguagem e sua manifestação, entre outras formas, no que se convencionou chamar língua, essa entidade tão entranhada em nós e ao mesmo tempo tão fugidia que escapa a qualquer definição satisfatória. Este primeiro volume parte da Mesopotâmia, onde se constituíram as primeiras sociedades urbanizadas da história, aborda as reflexões linguísticas empreendidas nas tradições hindu, islâmica e judaica para em seguida se fixar na Europa e nos desdobramentos das teses sobre a língua/linguagem desde a Antiguidade greco-romana até os séculos 17 e 18, depois de passar pela Idade Média e pelo Renascimento. Um segundo volume se dedicará inteiramente ao século 19 até alcançar as duas primeiras décadas do século 20, período em que a linguística vai se constituindo como disciplina autônoma, dotada de teorias e metodologias próprias, capazes de conferir a ela o ambicionado rótulo de ciência.

Pode-se dizer que as reflexões sobre língua e linguagem na tradição ocidental derivam essencialmente das tentativas de dar conta de três principais “problemas”:

(1) a origem (e a natureza) da linguagem e das línguas;

(2) a relação entre linguagem e pensamento;

(3) a mudança linguística.

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Uma história da linguística

Capturar2 'Uma história da linguística' é uma obra em dois tomos.
"UMA NÃO-RESENHA" [S. Possenti]
 
Ninguém falou aqui na minha bolha de 'Uma história da linguística, tomo 1: da Antiguidade ao Iluminismo', de Marcos Bagno, embora tenha sido possível ver a foto da capa do livro na mão de algumas pessoas e declarações (uma, acho) de que o livro estava sendo lido.
Vou dar aqui umas impressões (até porque desvendei o suspense que o editor da Parábola criou alguns dias antes do lançamento, quando eu “afirmei” que se tratava de um livro do Bagno).
A primeira e melhor impressão, dentre diversas: a escrita do autor:
Bagno, sem dúvida, encontrou um tom e um estilo exemplares; pode ser lido com prazer por leigos (o que não quer dizer ignorantes) mesmo quando apresenta análises de dados, que, em geral, é quando a cobra fuma, e por profissionais, claro, que podem contrastar o que estão lendo com o que leem normalmente (quando prestam atenção à materialidade da língua, o que nem sempre é o caso).
A segunda impressão muito positiva é o destaque do autor às doutrinas filosóficas que informam as teorias gramaticais (alguns diriam que derivam delas, talvez). Por exemplo, mostra que (e onde) as concepções platônica e aristotélica (para simplificar) duram até hoje, manifestando-se de diversas maneiras, em especial nas teorias mais dedutivas ou indutivas (pretensamente indutivas, diria Popper), mais racionalistas ou mais empiristas. Acho que os currículos de letras e de linguística não prestam atenção a esses “detalhes”, o que faz com que seguidores de cada uma das vertentes pensem talvez que suas teorias foram inventadas anteontem e se devem a alguma (ou a UMA) psicologia recente
O Bagno historiador destaca fatos sociais e históricos relevantes, tais como a gramatização de línguas “exóticas” o que essa gramatização mostra que não são (embora isso não seja tão destacado nessa obra), a relevância da escrita nos avanços das análises, a criação politicamente enviesada e diferenciada - vide italiano e francês – das línguas nacionais. São temas que não aparecem em outras histórias, arrisco a dizer, embora conheça poucas.
Abre espaço à “linguística” oriental, com destaque para a indiana (todos ouviram falar de Panini, acho, mas nada mais que isso). Não sei avaliar direito, mas parece que o livro faz o que a linguística fez: depois de apresentada, essa linguística desaparece, o que deve significar que não influenciou “nossa” linguística.
Uma das estratégias do livro é apresentar as grandes teorias em disputa em certas épocas, esboçadas por filósofos, como Locke, Leibniz e Condillac, por exemplo, e depois apresentar, mesmo que sumariamente, autores que se enquadram em uma ou outra das grandes vertentes. E assim vai. Tem muita coisa muito boa nessa 'Uma história da linguística, tomo 1: da Antiguidade ao Iluminismo', que merece (ou precisa) ser lida.
Para não dizer que não falei de flores, duas estranhezas (são isso mesmo):
(a) o apelo a definições de um dicionário (Houaiss) , por melhor que ele seja, de conceitos graves (o que contrasta com a erudição que marca o livro);
(b) a ausência da bibliografia (que virá no segundo tomo, como explica o autor). É uma decisão editorial (meus últimos anos foram de “azar” com editoras), mas eu teria gostado de ver já agora.
Claro, isso não é uma resenha. Espero uma de algum linguista mais gabaritado.
 
 
 
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Comentários Recentes neste post
Visitantes — Marcos Marcoonilo
Fui ver: o tomo 1 tem 7 menções ao Houaiss; o 2 terá 4. Evidentemente o apoio teórico não está nesse recurso didático.
Domingo, 18 Junho 2023 17:24
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Nossa língua & outras encrencas

Nossa língua & outras encrencas “Este livro é mais uma declaração de amor à escrita e à língua portuguesa do Brasil e além” [Ana Elisa Ribeiro]

 

“Este livro é mais uma declaração de amor à escrita e à língua portuguesa do Brasil e além” [Ana Elisa Ribeiro]

 

O gênero crônica frequenta bem as escolas, em especial por meio de obras que reúnem a produção de autores e autoras consagrados. As crônicas estão nos materiais didáticos e, para nosso alívio, também ocupam ainda algumas páginas especiais nos jornais diários, além de sites especializados internet afora. São um gênero literário cheio de ginga e apreciado por muita gente em busca de formas breves. Por outro lado, prementes questões de língua/linguagem são normalmente reservadas à sisudez das gramáticas e das aulas de língua portuguesa. Elas parecem reservadas a um mundo sem cor, feito só de regras.

Como tratar, numa abordagem capaz de produzir aproximação, contra a distância já instalada, esse conjunto sempre em mudança de questões linguísticas determinantes para nossa fala, escrita e identidade? Ana Elisa Ribeiro responde: “Com crônicas!”

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Ortografia não é língua!

blog18ABRIL Ortografia não é língua, ok. Mas é gramática?

Início de janeiro, uma amiga compartilhou um meme que dizia assim:

“Vamos parar de falar de política e falar de gramática? Aprenda a diferença entre

empoçado [um patriotário chafurdando na lama depois de um temporal] e empossado [Lula]”.

Por pura implicância jocosa (para isso servem as amigas), eu escrevi que era muito engraçado mesmo, só que não se tratava de gramática, mas de ortografia. Foi a deixa para que eu ficasse empoçado em comentários. Uma pessoa insistiu:

“A ortografia faz parte da gramática”.

Eu retruquei:

“Faz nada!”.

Ela revidou:

“Faz sim!”

Como não dá para explicar quase nada em comentários de rede social, aqui vai (espero) algum esclarecimento.

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3 passos — FIRMES — rumo ao escrever na escola

Capturar Dificilmente viveremos sem escrever nada, então decidimos sistematizar isso e pensar assim...

Toda semana tem. As aulas de redação são específicas, em tom de oficina, e nossa missão mesmo é escrever. A ideia não é explicar a “teoria” e partir para a prática, mas bem ao revés, ainda mais a esta altura. Em meados do ensino médio, já podemos dispensar explicações que ecoam desde o fundamental I. O que queremos fazer é escrever e, da prática, chegar à “teoria”, ao entendimento-clique de eventuais decorebas de tempos idos, aquele pequeno susto que é entender para que serve, enfim, algo que ouvimos no quinto, no sétimo, no nono ano. Metalinguagem finalmente revista, compreendida — “ah! era para isso?!” —, rumo a um certo alívio e buscando autoconfiança.

Nas aulas de redação, naquelas tardes quentes de quarta-feira, temos conversado sobre três passos que precisamos dar rumo a uma escrita mais sustentada, queremos dizer, mais consciente das escolhas feitas, mais precisa, mais adequada. Fugimos, todo o tempo, da ideia polarizada de certo e errado. Ela aparece, pipoca, salta, mas nós a evitamos porque buscamos pensar contextualizadamente: mas e neste texto, com esta intenção, para este efeito? Somos, afinal, os produtores, os escritores. Não é verdade que nossa escrita seja aleatória, fortuita, um golpe de sorte apenas. Nossa escrita é pensada, pinçada, querendo ser um texto cujo efeito nos satisfaça, e aos leitores, se os houver. Eis um problema de base: para quem?

Bem, três passos que nos parecem interessantes, um esquema que perseguimos ao longo do ano, mas que gostaríamos que transbordasse para a vida, adiante e adentro. Dificilmente viveremos sem escrever nada, então decidimos sistematizar isso e pensar assim:

PASSO 1

Podemos estranhar nossa própria escrita

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LINGUAGEM NEUTRA E FASCISMO

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Num texto breve e de tom moderado (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/lygia-maria/2023/02/o-sexo-das-palavras.shtml, Lygia Maria, apresentada como mestre em Jornalismo pela UFSC e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, aborda, pela enésima vez na imprensa só este ano, a questão da linguagem neutra. O título é pouco feliz (“O sexo das palavras”), porque as palavras não têm sexo, têm gênero — e a confusão entre sexo e gênero, como se sabe, é fonte de muitos equívocos ou, pior, de atitudes sociais que, hoje em dia, se vinculam a toda sorte de violência fascista (vide as ameaças de morte que as pessoas trans eleitas para cargos legislativos recebem da parte dos criminosos que se sentiram legitimados em sua ânsia assassina pela ascensão ao poder do maior delinquente da história do Brasil). Mas querer distinguir as duas coisas é cometer “ideologia de gênero”, outra estupidez semeada e regada por esses mesmos criminosos.  

Esses equívocos imperam até mesmo no (nada inocente) ensino de língua. Quantas vezes ouvimos dizer que vaca é o “feminino” de boi? Não é. A noção de gênero, na gramática, se relaciona com a morfologia, isto é, com a formação das palavras da língua (e não com o sexo dos animais). Gata é o feminino de gato, mas vaca não é o feminino de boi: é uma forma supletiva, não deriva da mesma raiz. A esse respeito (e para mostrar que as ideologias que circulam na sociedade estão devidamente impregnadas nos modos de abordar a língua), é interessante observar que, no Dicionário Houaiss, a primeira definição dada a vaca é “fêmea do boi”, enquanto para boi o que se encontra é “designação comum aos mamíferos artiodáctilos do gên. Bos, da fam. dos bovídeos...” etc. Não é curioso que o boi não seja definido como “macho da vaca”? O mesmo dicionário define mulher como “indivíduo do sexo feminino”, sem informar de que espécie (afinal, uma vaca também é um indivíduo do sexo feminino da família bovídea), enquanto homem é “mamífero da ordem dos primatas, único representante vivente do gên. Homo, da sp. Homo sapiens” etc.

Durante dois mil anos, todos os dicionários e gramáticas foram escritos por homens: não admira, portanto, que o masculino tenha sido considerado desde sempre como o básico, o princípio, o óbvio, o natural... a norma. O feminino é que constituía (constitui) um “ponto fora da curva”, um “desvio” ou qualquer coisa assim. O sexismo enraizado em praticamente todas as sociedades ao longo da história, e chancelado pelas grandes religiões, não podia deixar de comparecer no tratamento da linguagem. Já ouviram falar daquela oração dos judeus que começa assim: “Bendito sejas tu, eterno nosso Deus, rei do universo, que não me fizeste mulher”? Pois é... O próprio termo Deus, no masculino, é indício dessa antiquíssima misoginia.

O breve texto de Lygia Maria, sem dúvida bem-intencionado, tropeça em mais de uma concepção tradicional de língua, daquelas que, de tão repetidas, se cristalizaram como verdades quando, de fato, são construtos ideológicos. Afirma que a comunidade LGBTQIAPN+  considera a língua como manifestação simbólica de opressões sociais porque a língua segrega e ofende. Não se trata de “considerar”: a língua é, sim, instrumentalizada para oprimir, discriminar e violentar grupos sociais, etnias e até populações inteiras. A articulista provavelmente não gostaria de se ver apresentada como doutor em Comunicação e Semiótica, como constava até recentemente nos diplomas das mulheres. Foi Dilma Rousseff quem sancionou uma lei (em 2012) que obriga a flexão no feminino dos títulos acadêmicos e profissões. A mesma Dilma Rousseff em torno da qual circulou uma polêmica idiota acerca do uso do termo presidenta, documentado na língua desde 1812. Polêmica falsa porque, de fato, nunca esteve em jogo o tal “amor à língua portuguesa” (como disse, com ar boboca, a ministra Cármen Lúcia, ao se tornar presidenta do STF), mas a mais clara e límpida misoginia, aliada ao reacionarismo visceral da camada letrada da sociedade brasileira (uma mulher na presidência? Yahweh nos livre e guarde!). Misoginia que viceja, aliás, em boas porções da esquerda brasileira (majoritariamente masculina, branca e heterossexual).

Ainda segundo Lygia Maria, a ideia de que a língua segrega e ofende é uma visão apriorística [que] desconsidera os contextos de interação na produção de sentido. E complementa: A mera expressão ‘Bom dia a todos’ não me agride como mulher, já que o masculino no português é genérico. O sentimento de uma só pessoa deve servir de régua para todo o resto da sociedade? Se ela não se sente agredida, good for her! O curioso é que, depois de fazer essa declaração, ela escreve: A língua não gira em torno dos indivíduos. Oxente! Se não gira, por que foi que deu aquele depoimento, individualíssimo, sobre o que sente ou não? E questão principal: por que a forma no masculino tem sentido genérico em português e nas demais línguas românicas? Porque era assim em latim. Tá, mas por que era assim em latim? As estruturas de uma língua não brotam do chão nem caem do céu — são humanas, demasiadamente humanas. Basta lembrar que havia em latim as palavras vir (“ser humano do sexo masculino”, de onde o adjetivo viril e o substantivo virtude, que fala por si) e homo (“ser humano em geral”). Mas como o ser humano do sexo masculino logo foi identificado como o modelo, o protótipo e o arquétipo da espécie humana, o termo homo se generalizou para designar tanto o macho quanto a espécie humana (até na terminologia científica: Homo sapiens). Do acusativo dessa palavra, homine-, é que provém o português homem, e seus equivalentes em outras línguas românicas.

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Visitantes — PATRICIA KONDER LINS E SILVA
Aprendi muito com você. Maravilha.
Domingo, 26 Março 2023 23:30
Visitantes — Wellington Rodrigues
ESPETACULAR!!!! Ocorre-me uma pergunta, apenas: a linguagem "neutra" não deveria ser chamada de linguagem "inclusiva", uma vez q... Leia Mais
Domingo, 09 Abril 2023 03:12
Visitantes — Edgar Azevedo
Aurélio Buarque de Holanda "Bode (or. Incerta) 01. O macho da cabra" Nada mais a declarar
Segunda, 15 Mai 2023 22:01
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 A COISA CELTA

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Marcos Bagno

 

Faz algum tempo, assistindo o noticiário da televisão francesa, ouvi a locutora dizer que o presidente Emmanuel Macron estava de partida para a residência oficial de verão em Brégançon. Esse nome imediatamente acendeu luzinhas na minha cabeça de nerd da geografia e da etimologia. Eu nunca tinha ouvido falar de Brégançon, mas logo deduzi que a semelhança entre Brégançon, na França, Bregenz, na Áustria, e Bragança, em Portugal, não podia ser mera coincidência. E de fato não era. Qualquer foto de Brégançon (como aquela acima, que ilustra este texto) mostra um rochedo à beira do Mediterrâneo, no alto do qual se encarapita um forte que circunda uma bela residência presidencial. Por ser um rochedo alto é que em seu nome aparece a palavra celta briga, que significa “altura, elevação” e daí “fortificação elevada”. Essa palavra celta, por sua vez, provém do indo-europeu *brhergh, “alto, elevado”, que também está na origem do alemão Berg, “montanha”. Como na antiguidade, por razões de defesa contra ataques inesperados, muitas povoações eram fortificadas e construídas em locais altos — colinas, montes, outeiros —, daquela mesma raiz indo-europeia derivam os termos Burg, do alemão, e borough e burgh, do inglês, que, inicialmente, designavam fortes e fortalezas e, mais tarde, “cidade”. O equivalente latino era o castrum, cujo diminutivo, castellum, nos deu castelo, palavra que, antes de designar a morada de um nobre, de um rei ou de uma princesa encantada, nomeava construções fortificadas no topo de alguma proeminência do terreno. O castrum romano está presente em muitíssimos topônimos (nomes de lugar) na Grã-Bretanha, nas formas -caster (Lancaster), -cester (Leicester) ou -chester (Winchester), testemunhos do período em que a ilha esteve sob domínio romano.

Aquela mesma raiz briga aparece em vários outros topônimos na Europa, incluindo localidades do norte da Itália (Briga, Briga Navarese, Briga Marittima e até uma redundante Briga Alta). Mas é na Península Ibérica que eles vão aparecer em maior abundância. A Bragança portuguesa era Brigantia em latim, e a linda cidade galega que hoje se chama Corunha (A Coruña, em galego), era Brigantium para os romanos. Mas é como sufixo que -briga pululava na Antiguidade ibérica: Conímbriga (de onde provém Coimbra), Cetóbriga (atual Setúbal), Lacóbriga (atual Lagos), Langóbriga (atual Logoivra), todas em Portugal; Nemetóbriga (na Galiza), Nertóbriga (na Espanha), Segóbriga (também na Espanha), para citar alguns poucos. 

Da noção concreta de “altura, elevação” derivou, como consequência naturalíssima, o conceito abstrato de “eminente, excelente, excelso, altaneiro” etc. Daí porque daquela mesma raiz celta deriva o nome da deusa Brígida (Brighid em celta), associada ao fogo, à fertilidade, à primavera, nome que está na origem de Bridget, Brigitte, Birgit etc. O nome se popularizou, não por causa da deusa celta, mas de uma santa católica, Brígida da Irlanda ou Brígida de Kildare (452-524), para quem, curiosamente, foram transferidos alguns dos mesmos atributos da deusa “pagã”. Também existiu uma tribo céltica chamada brigantes, que deixou marcas de sua passagem por vários lugares da Europa, desde a Áustria atual até a Inglaterra. Talvez se chamassem assim por se considerarem “altos, excelsos, eminentes” ou porque se estabeleciam em lugares elevados. 

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Visitantes — PATRICIA KONDER LINS E SILVA
Obrigada por tornar fascinante a origem das palavras. Adorei o artigo.
Domingo, 26 Março 2023 23:24
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Ler para as crianças é entrar no coração delas e nunca mais sair

Ler para as crianças é entrar no coração delas e nunca mais sair

7 motivos para tirar o escorpião do bolso e comprar um livro bem bacana

 

Já prestou atenção? Que criança não curte uma boa história? Difícil encontrar um piá que não fique boquiaberto com dragões, quartos escuros, portais mágicos ou bruxas engraçadas. Meu filho, por exemplo, quando menor, curtia uma bruxa bem feia, que zanzava por aí montada em um bode voador. Ouvia aquela história num misto gostoso de medo e gargalhada. Impagável. Até mandei um e-mail ao autor, certa vez, para agradecer a oportunidade de que eu fosse uma leitora divertida para meu pequeno, que ainda nem sabia ler. 

 

Ah, mas vai saber. O garoto ficava tão curioso e tão intrigado com a magia de tirar palavras e histórias de uns rabiscos que era doido para aprender aquilo. Quem mais poderia atrair um novo leitor, além de outro leitor? Experimenta, depois me conta. Uma boa história de medo, um conto bonito, uma narrativa comovente, um poema altissonante, bem rimadão assim, as crianças curtem, curtem muito, sem as desobrigações que virão mais tarde. E se curtirem o embalo desde bem cedo, quem sabe o guri ou a guria passam a ler a torto e a direito, sem ligar se a escola mandou, se a mãe pediu, se o pai deu de castigo, se é moda na TV… 

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Toda língua já foi segunda língua

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Marcos Bagno

 

Por que será que as línguas ditas românicas (ou neolatinas) apresentam semelhanças entre si, mas não são idênticas? Se todas são “derivadas do latim”, por que não “evoluíram” todas na mesma direção? O português e o espanhol, por exemplo, vivendo há centenas de séculos lado a lado na Península Ibérica, são tão parecidos e, ao mesmo tempo, apresentam diferenças marcantes — por quê? A resposta é: o português, o espanhol e as outras línguas românicas ganharam suas feições atuais porque foram, numa fase inicial de sua história, segundas línguas das comunidades em que surgiram. Uma segunda língua (ou L2), como o próprio rótulo sugere, não é a língua da socialização inicial de uma pessoa, é uma língua aprendida num período posterior ao da aquisição da chamada língua materna, que seria a primeira língua (ou L1) — vou me valer dessas classificações, embora esses conceitos venham sofrendo reformulações. 

No século 19, quando se firmou a linguística histórico-comparativa, os estudiosos (quase todos alemães) se apoiavam na tese de que as línguas se modificavam “de dentro para dentro”, como organismos vivos que nascem, crescem, amadurecem, decaem e morrem. Contra essa visão organicista (já escrevi sobre isso: https://bit.ly/3Ac48Fn), no final do mesmo século, alguns autores propuseram ver a mudança linguística também como efeito do contato de línguas, isto é, das relações que se estabelecem, por diversas vicissitudes históricas, entre falantes de línguas diferentes.

Poderíamos recuar nosso relato até a pré-história, mas vamos ficar no domínio das línguas românicas para não nos alongarmos além do necessário. Os romanos, em seu expansionismo imperial, levaram o latim para lugares muito distantes de seu Lácio natal. Uma vez conquistada uma região (e seus habitantes), ela recebia o nome de província. Roma enviava para lá um contingente de funcionários imperiais, responsáveis pela administração do território conquistado, guarnições militares, colonos que recebiam terras para cultivar, toda uma gente falante de latim que se estabelecia com suas famílias e servos. Também implantavam nas províncias as diversas instituições que geriam a vida sob o império — templos, tribunais, escolas etc. —, junto com os funcionários que se ocupavam da administração (questores, censores, cônsules, edis…). Construíam aquedutos, rasgavam estradas, fundavam cidades conformes à urbanização típica romana.

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Visitantes — Jacson Aguiar
Qual o nome q se dá ao ato de uma pessoa saber a grafia correta de determinadas palavras mas(proposital e colocadamente) as focali... Leia Mais
Quinta, 01 Setembro 2022 01:20
Visitantes — Gramático
O que poderia ser um bom artigo informativo sobre o desenvolvimento da língua portuguesa infelizmente peca pela falta de imparcial... Leia Mais
Quarta, 14 Setembro 2022 15:14
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A diretora da LabPub Cassia Carrenho conta como foi a Bienal do Livro de São Paulo este ano

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Por Cássia Carrenho

 

 

A Bienal Internacional do Livro de 2022 ganhou o apelido de “Bienal das Bienais” e, mesmo parecendo um tanto arrogante, tenho que concordar!

 

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NOMENCLATURA, PRA QUE NOMENCLATURA?

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Faz muito tempo (talvez até tempo demais) que linguistas e educadoras lamentamos que o ensino de língua ainda insista nas práticas de classificação das palavras e de análise de frases soltas. Em seu livro Gramática na escola (de 1990, ou seja, 32 anos atrás!), Maria Helena de Moura Neves mostrou que quase 70% do tempo das aulas de português eram gastos com tarefas de análise morfológica e análise sintática, enquanto o desenvolvimento das habilidades fundamentais de leitura, escrita e reflexão linguística era deixado à margem. Essa situação decorre, entre outras causas, do fato de 70% das professoras e professores terem se formado em faculdades particulares, a maioria das quais oferece uma formação de baixa qualidade, pasteurizada, padronizada em apostilas que docentes com péssima remuneração têm que “aplicar” sob vigilância cerrada. No caso de língua portuguesa, não são poucos os cursos que se resumem a levar a pessoa em formação a decorar a tradição gramatical de forma acrítica para “ensiná-la” depois, ou seja, para ensinar “a matéria que ninguém aprende”, como disse Mário Perini em seu livro Sofrendo a gramática (de 1997), já que não serve para nada. 

Essa metodologia de ensino limitada à análise morfológica e à análise sintática remonta a pelo menos mil anos! Embora tivesse deixado de ser falado como língua materna, o latim permaneceu durante séculos como a única língua de cultura, a única que era objeto de estudo sistemático. Sem falantes reais e, principalmente, por ser um modelo artificial de língua literária (o chamado “latim clássico”), só era possível aprender latim pela identificação das classes gramaticais a que pertenciam as palavras e pelo papel que exerciam na sintaxe. Não era possível recorrer a ninguém que tivesse o latim como língua materna quando surgisse alguma dúvida (tal como fazemos hoje quando aprendemos alguma língua estrangeira viva). Não admira que, no período medieval, gramática fosse sinônimo de latim. Quando as línguas faladas nas diferentes regiões da Europa começaram a ser padronizadas, dicionarizadas e ortografizadas (acabei de inventar esse verbo!) e quando, já bem avançado o período moderno, começaram a ser ensinadas, a metodologia de estudo das línguas mortas (latim e grego clássicos) foi transferida tal e qual para o estudo das línguas vivas — um claro equívoco pedagógico que, infelizmente, se perpetua até hoje, e em vários lugares do mundo.

 “A fixação de uma nomenclatura gramatical tenta delimitar fronteiras para entidades que, de fato, circulam alegremente de um lado para o outro.”

O ensino de língua apegado à classificação das palavras, classificação que se faz por meio de uma nomenclatura gramatical, é muito problemático porque os termos empregados são confusos, inexatos quando não simplesmente errados. Além disso, a fixação de uma nomenclatura engessa a reflexão sobre o objeto em análise, tenta delimitar fronteiras para entidades que, de fato, circulam alegremente de um lado para o outro. A história de todas as áreas de conhecimento é, em boa parte, a história das críticas e das revisões das terminologias empregadas em cada especialidade. A definição de classe social, por exemplo, tem evoluído ao longo da história e depende da teoria sociológica em que o termo é empregado, às vezes até de formas conflitantes. No caso da análise linguística, podemos elencar diversos problemas na nomenclatura gramatical que até hoje norteia tanto o ensino de língua quanto a produção de livros didáticos. Vamos ver alguns.

Podemos começar com a definição clássica de substantivo como “palavra que designa os seres em geral”. Para entendermos essa definição necessitamos, previamente, de uma definição de ser — e faz quase três milênios que a filosofia se debate com essa definição. No dicionário Houaiss, por exemplo, aparece esta beleza no verbete ser: “O que existe realmente; aquilo que é”, uma definição que usa o próprio verbo ser (na forma é) para definir o ser. Ora, na frase “vou tomar um banho”, sabemos que banho é um substantivo – mas banho é um ser?

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Normatizar sem prescrever: a utopia do TAMBÉM

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Durante muito tempo nos estudos linguísticos se fez a oposição entre gramáticas normativo-prescritivas e gramáticas descritivas. Uma gramática normativo-prescritiva era aquela que delimitava um conjunto de regras (que constituíam uma norma) para impor essas regras (isto é, prescrevê-las) como as que deveriam ser ativadas pelos falantes da língua quando desejassem se exprimir de forma “correta” ou “elegante” (uma correção e uma elegância que, evidentemente, decorriam dos conceitos e preconceitos sociais do gramático). Essa norma-prescrição se dirigia (desde a Antiguidade) à produção de textos escritos, especialmente literários, ou de manifestações faladas que se “comportavam” como textos escritos (e que eram, quase sempre, oralizações de algum texto escrito previamente). A primeira gramática conhecida no Ocidente, a de Dionísio Trácio (170 aec-90 aec), se abre precisamente com estas palavras: “Gramática é o conhecimento prático do que é comumente expresso na obra dos poetas e prosadores” – ou seja, o vínculo com a produção de textos escritos com finalidades estéticas é assumido sem rodeios. Não por acaso, durante muito tempo se usou o termo língua literária para rotular a norma-prescrição dos compêndios gramaticais. Uma deformação social importante foi o entendimento de que essa língua literária devia servir de padrão de comportamento linguístico para toda e qualquer manifestação da língua, e assim é até hoje, com muitas pessoas criticando usos feitos por outras em situações informais, quase sempre faladas, e cobrando o emprego exclusivo das normas que foram prescritas pela tradição gramatical para a produção de textos escritos formais

Por seu lado, uma gramática descritiva seria obra de linguistas profissionais, que se empenhariam em observar os usos efetivos de uma língua em diferentes situações, descrevê-los e registrá-los, guiados pela pretensão de fazer um trabalho semelhante ao de cientistas como os geólogos, que examinam o universo mineral, descrevem o que encontram ali e documentam seus achados, sem jamais se perguntar se tal rocha que aparece em tal lugar está “certa” ou “errada” por estar ali. Essa pretensão poderia ser rotulada de ingênua porque uma língua é uma entidade de difícil delimitação (o que torna impossível, por exemplo, dizer quantas “línguas” existem no mundo), decorrente da evolução do cérebro humano ao longo dos milênios e enraizada profundamente na vida sociocultural de qualquer indivíduo e de qualquer grupo de indivíduos — ou seja, uma língua não é uma rocha que possa ser descrita com absoluta e total imparcialidade. O linguista é falante de uma ou mais línguas, pertence a uma comunidade de fala e, como tal, está impregnado das crenças, superstições, preconceitos e ideologias que configuram o meio social em que vive. As gramáticas descritivas são instrumentos preciosíssimos para o conhecimento de uma língua (ou de variedades específicas de uma língua) e se espera que sejam produzidas com metodologia rigorosa e com boa fundamentação teórica. Mas o próprio fato de optar por uma teoria ou outra já direciona aquilo que o linguista vai ou não descrever e o modo como vai (ou não) descrever. 

Com o passar do tempo, especialmente a partir da segunda metade do século 20, a dicotomia normativo-prescritiva e descritiva foi reavaliada, sobretudo com o desenvolvimento de disciplinas como a sociolinguística, a sociologia da linguagem, a análise do discurso, entre outras. O pesado estigma acadêmico que recaiu durante muito tempo sobre a gramática normativo-prescritiva começou a ser questionado. Uma das consequências desse movimento foi a separação do termo binário normativo-prescritiva em dois termos distintos: normativa vs. prescritivanormativa ou prescritiva. Embora muitas pessoas possam reivindicar uma liberdade geral e irrestrita para os usos da língua (tô eu aqui de mãozinha levantada), uma visão mais realista dos fatos sociais deixa claro que existe uma demanda social por normas linguísticas: a maioria das pessoas quer (ou querem) saber como se deve(m) comportar socialmente em termos de uso da língua (e o verbo comportar não é gratuito aqui porque a sociologia da linguagem define exatamente os usos da língua como um comportamento). Por exemplo: a maioria das pessoas quer ou queremdeve ou devem? É a esse tipo de pergunta que uma nova concepção de gramática normativa vem se dedicando e tentando oferecer respostas, e uma delas é precisamente sim, uma gramática normativa é algo positivo e necessário. No entanto, como escreveu o linguista francês Alain Rey já nos anos 1970: “Não se trata de rejeitar toda norma — nenhuma sociedade pode abrir mão delas —, mas sim de fiscalizar sua construção com a análise científica, e compreender a atividade normativa, isto é, modificá-la, como um setor da prática social menos inocente do que parece”. Traduzindo: precisamos de uma norma de comportamento linguístico desde que a base de sua elaboração seja o trabalho dos linguistas profissionais. E é aí que o normativo se conjuga com o descritivo: a partir do que se conhece sobre a língua — daquilo que tem sido descrito — é possível construir uma norma realista para responder às demandas sociais que visam o já citado comportamento linguístico.

Nesse sentido, normatizar seria reconhecer e até mesmo legitimar o que já é normal na língua, o que já circula na sociedade, inclusive nas manifestações escritas formais. Gosto sempre de usar como termo de comparação as práticas sociais relativas ao casamento. Durante longuíssimo tempo, o casamento era considerado indissolúvel (… até que a morte os separe…), mas muitos casais se separavam, mantinham as aparências do casamento, mas cada um levava vida independente (muitas vezes até vivendo sob o mesmo teto). Esse comportamento acabou por ser normatizado, isto é, reconhecido por lei, legalizado. O mesmo vale para as relações entre pessoas do mesmo sexo, que vão conquistando aos poucos uma normatização mais do que justa e necessária. 

Assim, por exemplo, uma gramática normativa, não prescritiva, do português brasileiro poderia (ou deveria?) registrar e definir como aceitável em todas as manifestações de uso da língua — incluindo a escrita mais formal — a concordância verbal que aparece nos exemplos abaixo (uma gota d’água no oceano de dados que venho coletando há muitos anos): 

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