Blog27Julho Um romance inesperado numa editora impensada

A vida na Grécia é um inesperado romance numa editora, à primeira vista, impensada. O autor é reconhecido como um dos linguistas de destaque na atualidade, autor também de obras infantis, juvenis e de poesia, além de tradutor com mais de 150 traduções publicadas. Suas obras mais divulgadas e lidas [pensemos em Preconceito linguístico, seu long-seller há 22 anos] estão no campo dos estudos de língua/linguagem. Nunca se soube que ele fosse romancista e, de repente, aparece ele com um romance… Temos um enigma em torno da aparição de A vida na Grécia — rapsódia. A editora, igualmente, leva vinte anos publicando no mesmo campo, pelo qual se notabiliza, pouco se sabendo, até agora, da vocação do autor e da Parábola Editorial para o romance. O lançamento aqui apresentado foge do que se conhece tanto do autor quanto da editora.

 A vida na Gréciarapsódia é um “romance de formação” em cujas páginas vamos acompanhar o trajeto de vida de Manuel, da infância à vida adulta. Manuel aparece inicialmente na infância como uma personalidade tímida, dotada de uma sensibilidade muito aguçada que lhe impede uma interação fácil com a maioria das pessoas e com o mundo circunstante. A “Grécia” do título se refere precisamente a esse desajuste, a esse “lugar distante” em que Manuel vive, muito para dentro de si. Ele vive num mundo que se manifesta em pedra, sua vocação é para o assombro, a cada tentativa de fazer laço.

Por outro lado, o “rapsódia” do subtítulo remete ao poético que impregna a prosa do autor. Bagno escreve para seduzir com um texto que simultaneamente abriga e desafia as(os) leitoras(es). Se “rapsódia” remete a “recitação de trecho de um poema épico”, “fragmento de um poema”, “epopeias de uma nação”, “peça musical”…,  logo vemos que esse romance está todo tomado de poesia. Pouco se verá atualmente prosa tão poética e sonora quanto a que temos nesse livro. Conta-nos o autor:

“Foram 33 anos de escrita, reescrita, avanços e recuos, esquecimentos fingidos e lembranças duvidosas, saudades de nada e suspeitas de tudo… A minha é uma Grécia toda particular, muito íntima, e às vezes me pergunto se não teria sido melhor mantê-la oculta entre as pedras que amontoei ao seu redor. Mais de meia vida fantasiada de mito, disfarce que mais revela do que esconde, como é próprio dessa coisa chamada palavra”.

A vida na Grécia levou 33 anos sendo escrito, sem que ninguém se desse a menor conta de sua construção, nem mesmo as pessoas mais próximas do autor. De repente, o romance se impõe a ele, que teve de dá-lo a lume. Extinguia-se a relação platônica com a escrita de um livro que exigia abandonar a forma ideal a que se tenta chegar pela escrita e pela reescrita, pela contemplação da forma. Confirma-o o autor: “Na verdade, a forma ideal que me habita a alma nunca será atingida”.

Tornou-se, então, imprescindível desenhar e imprimir esse romance inesperado, que é também um exercício de linguagem consciente, de exploração sem limites das possibilidades expressivas da língua. Registro disso é a própria nova forma de marcar os diálogos, numa construção de fluxo quase contínuo, com mínima separação entre o muito pensado e o tão pouco dito:

Essa escrita — ao mesmo tempo, clara e cifrada —acompanha o próprio percurso de Manuel na direção de seu objetivo de vida, que é tornar-se escritor. No decorrer da obra, também se veem todas as menções aos autores fundamentais para a escrita do romance, exercício que nos faz perguntar: nesse percurso, quem se torna escritor? Manuel? O autor? Mas o autor já é um literato experimentado e premiado… E quais serão esses autores, essas leituras que sua escrita evoca? Há muito a ver!

Então, vale dizer: estamos diante de um romance essencialmente intimista, em que cada capítulo captura o personagem num momento dado da vida, sem uma continuidade cronológica rigorosa, o que nos permite ir construindo o exercício para a vida [Bildung] de uma personalidade que, ao mesmo tempo, atrai e exaspera. Não são poucos nem breves os momentos do livro em que teremos de cegar nossos olhos para acompanhar com o coração o trajeto de Manuel. “Temor e tremor” aqui não são abstrações.

O resultado se traduz em deleite e inquietação. A experiência de leitura desse romance será impactante, assim como foi impactante a criação da obra:

“Eu mesmo ter de falar do que levei 33 anos escrevendo beira o impossível. O autor é quem menos tem a dizer sobre o livro, a não ser factualidades. A gente mesma falar do que escreveu (no caso de ficção e principalmente de uma ficção toda impregnada na poesia como é o caso) é um exercício de desmantelamento da poesia. Melhor que outras pessoas falem” (Marcos Bagno, comunicação pessoal).

Falar desse livro e de seu inesperado não se faz sem a ousadia do mergulho na ficção confessional e exigente de um autor que [se in]surge em mais uma faceta de seu dom de escrita, num texto elevado e arrebatador.

Serão sempre insuficientes as palavras para falar dessa obra. O que propomos é a surpresa da descoberta da face inédita de um autor que vai, durante a vida, desdobrando talentos.